C VEÍCULO: Gazeta do Povo - Curitiba
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Opinião
16/12/2007
Não sei se já contei isto. Eu fa
zia parte de um grupo de es-
critores convidados para uma
feira de livros em Montpellier.
Chico Buarque, Milton Hatoum,
Tabajara Ruas, Charles Kiefer,
Betty Mindlin, devo estar esque-
cendo alguém. Na chegada nos
informaram que Gilberto Gil fala-
ria na solenidade de inauguração
da feira em nome do governo
brasileiro (era o ano do Brasil na
França) e quem falaria em nome
dos escritores seria - eu! Fugir
era impossível, simular um enfar-
te ou a súbita perda de voz seria
ignóbil. Lá fui eu para o palan-
que, em pânico. Não adiantaria
dizer que cada vez que eu falo
francês a Academia Francesa
faz uma reunião de emergência.
Haveria um intérprete, eu pode-
ria falar na minha língua mater-
na, embora toda vez que eu faço
isso ela negue o parentesco. As
autoridades locais discursavam,
o Gil
discursava (em francês per-
feito) e eu suava. Me lembrei da
recomendação dada às mulheres
de diplomatas britânicos em mis-
são no exterior: se o estupro é
inevitável, relaxe e pense na In-
glaterra. Não ajudou. Pensei: tal-
vez, quando chegar a minha vez,
o palanque desabe. Seria sorte
demais. Decidi que o jeito era bo-
lar alguma bobagem para dizer.
O dia em que encarei a gendarmerie
Agência O Globo
Era uma daquelas ocasiões em
que qualquer bobagem serve, ou
é preferível a um silêncio catato-
nico. E traduzida para o francês,
qualquer bobagem soa bem. Mas
que bobagem?
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Na época aquela francesa
seqüestrada por terroristas no
Iraque ainda estava presa. Um
grande cartaz com seu rosto do-
minava a praça central de Mont-
pellier onde se realizaria a feira
e os pais da moça participavam
da solenidade. Ali estava um
mote. A cultura contra o terro-
rismo. Os livros contra a barbá-
rie. Um oásis de razão num mun-
do insensato. Alguma coisa as-
sim. Quando chegou a minha
vez, fui para o microfone - depois
de resistir a um último impulso
de pular do palanque e sair cor-
rendo - e o intérprete se postou
ao meu lado. Eu disse que aque-
le evento era uma celebração do
poder do intelecto em contraste
as forças do mal, ou coisa pareci-
da. E lembrei o famoso episódio
da Guerra Civil Espanhola em
que um general franquista termi-
nou um discurso inflamado gri-
tando "Abaixo a inteligência, vi-
va a morte" e provocou uma rea-
ção indignada do velho Miguel
de Unamuno. Terminei o meu dis-
curso dizendo "Abaixo a burrice,
viva a inteligência!". Virei-me pa-
ra voltar ao meu lugar enquanto
o intérprete traduzia a última
frase, e ouvi uma ovação. Epa,
pensei. Minha frase fez sucesso.
Sou melhor orador do que eu
pensava. Levantei a massa!
Depois avisaram ao intérpre-
te que ele tinha se enganado na
tradução. Ele se desculpou comi-
go e em seguida corrigiu seu erro
para o público. Eu tinha dito
"abaixo a burrice" - não abaixo
a polícia". Grande decepção do
público. Eu não era, afinal, um
celerado anarquista. Quando
desci do palanque notei que al-
guns "gendarmes" me olhavam
feio. E até hoje não sei o que a
população de Montpellier tem
contra a sua polícia.
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