CLIENTE: Gilberto Gil
VEÍCULO: O Globo - RJ
SEÇÃO: Segundo
DATA:
G
ilberto Gil está prestes a entrar no palco
montado na arena de touros de Zarago-
za, Espanha. Lá, pouco antes, o público
misturado de brasileiros e espanhóis en-
frentara, com notável resignação, a apresenta-
ção de uma moça bonitinha, chatinha e bem-in-
tencionadinha, que cantou as dores do mundo e
adormeceu meia platéia. De repente, ouve-se
aquela voz burocrática que lembra aos especta-
dores que devem desligar os celulares, e que é
proibido fotografar ou filmar o espetáculo.
Só que, na abertura de "Banda larga", a voz
informa que se pode filmar, fotografar e gra-
var à vontade. Como nos bons tempos do Gra-
teful Dead, a arte é livre. Quando a cortina se
abre, há, previsivelmente, um mar de câme-
ras, filmadoras e celulares clicando em frente
ao palco. Aqui e ali ouvem-se os lamentos de
quem deixou a máquina em casa.
A simples presença de Gil levanta o povo que
cochilava nas cadeiras. Antes mesmo que ele
abra a boca, todos já estão de pé, elétricos, aos
pulos. A emoção dos brasileirinhos de Zaragoza
é contagiante e comovente; ali eles estão de no-
vo em casa, dançando e cantando o que conhe-
cem, na língua em que cresceram. Os espanhóis
demoram um pouco a pegar, mas logo entram
no clima. Festa total. Gil conversa com a platéia
em castelhano; em dado momento, embatuca
numa palavra, pede ajuda aos brasileiros. O so-
corro é imediato.
- Quando eu contar lá em casa que corrigi
o ministro da Cultura, ninguém vai acreditar!
- vibra uma garota, deslumbrada.
Muitos dos vídeos e fotos produzidos pelo
público durante a turnê, que começou em
Aveiro em 6 de julho e termina em Marciac em
6 de agosto, pipocam pela internet, no YouTu-
be, no Flickr, no Fotolog e na própria página de
"Banda larga", no vaivém que é a essência da
rede, e que Gil compreendeu como poucos.
No dia anterior, em Valência, eu estava tran-
cada num centro de convenções gigantesco, di-
vidindo a banda mais larga que já encontrei na
vida com cerca de seis mil pessoas, num acam-
pamento nerd chamado Campus Party. Lá havia
de tudo, de gente construindo pequenos robos
engenhosos a desenvolvedores de jogos e apli-
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CORA RÓNAI
a Idade Média
Entre
e a banda larga
cativos, passando pela vasta maioria a quem só
interessavam mesmo os games e a velocidade
alucinante com que se podiam baixar coisas.
Tudo completamente século XXI, das máqui-
nas poderosas ao combustível dos pilotos: al-
guns chegavam a montar as latinhas vazias do
Red Bull que os mantinha pilhados em torres
imensas e estruturas complexas. A qualquer
hora do dia ou da noite em que se entrasse num
dos dois pavilhões, havia gente conectada; a
idéia geral era deixar para dormir depois, quan-
do se voltasse para casa. Campeonatos eletrô-
nicos se sucediam, celulares e computadores
eram hackeados diligentemente.
As quatro horas de estrada que separam Va-
lência de Zaragoza atravessam o coração rural
Cora Rónai
da Espanha. A paisagem, imemorial, é a mesma
que se vê, com poucas variações, em séculos
de pintura, das iluminuras caprichosamente
pintadas pelos monges da Idade Média às telas
de Van Gogh: campos infindáveis de feno, gi-
rassóis a perder de vista, o céu azul de doer.
Fora da estrada, o silêncio é tão poderoso
quanto o sol. Há pássaros, às vezes, mas a sen-
sação predominante é a de uma
sus-
pensão do tempo. Nossos ouvidos urbanos
não estão mais acostumados à terra em estado
bruto, ao ar parado em que não se ouve sequer
o farfalhar de uma folha.
Os campos são pontilhados por velhas ca-
sas de pedra abandonadas e pequenas al-
deias-fantasma. Essas são as testemunhas
mais eloquentes do passar do tempo e das
mudanças que aconteceram no século passa-
do. Onde antes eram necessárias dezenas de
pessoas para cuidar da terra, hoje basta meia
dúzia de operadores de máquinas. Perdeu-se
em poesia, ganhou-se em produtividade. Não
se pode ter tudo
Castelos em ruínas enfeitam o alto dos mon-
tes. O mais espetacular é o de Daroca, onde par-
te das muralhas que cercavam a cidade ainda
está de pé. Um habitante do século XV não no-
taria grande diferença no traçado das ruas e na
disposição das casas, e penso como será pas-
sar a vida nesse povoado onde o tempo parou.
Fico com a impressão de que não há televisão
ou internet capazes de romper a barreira das
muralhas, das cabeças e das almas, da vida pe-
quena, das casas habitadas por gerações e ge-
rações consecutivas, da repetição infinita do
trabalho do campo. A beleza da vista lá do alto
é de tirar o fôlego, já bastante reduzido pela su-
bida ingreme num calor de 40 graus. Aproveito
a ocasião para agradecer ao Todo-Poderoso por
não ter nascido la.
TI
Saí na quinta-feira de Valência, assisti ao
show do Gil e voltei de Zaragoza na sexta. O
que era para ser apenas uma quebra na rotina
da Campus Party acabou virando uma viagem
metafísica. Eu ainda estava pensando em
quantos séculos atravessei naqueles dois
dias, em quantas centenas de anos foram de-
voradas pelas instruções lacônicas do GPS do
carro - "a 200 metros prepare-se para virar à
esquerda", "siga em frente", "saia pela saída"
- enquanto subla a ladeira que levava à Feira
de València, situada num bairro de periferia.
Ao lado do cemitério, na rua tinindo de lim-
pa, vizinhos conversavam em cadeiras dis-
postas na calçada. Um vira-lata dormia no
chão, dois gatos olhavam de longe e, no céu,
os primeiros contornos de uma lua quase
chela prometiam uma noite linda.
Cumprimentei as pessoas com um aceno de
cabeça, como se fazia antigamente, virei a es-
quina e entrei no prédio frio e monumental da
Feira. Estava de volta ao século XXI.
Blog: www.cronal.com
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