CO-304
Andrade, Mário de. [Carta] 1936 mar. 14,
São Paulo, SP [para]
Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. 3 p. [datilografado]
Portinari,
Está aqui uma chuva de inundação, fabulosa. Fiquei meio sem que fazer pois tinha de ir na cidade fazer umas compras e por em dia uma conta de livros do Departamento, então resolvi por em dia pelo menos parte da correspondência atrasada. Principio por você e aliás estava mesmo matutando de escrever pra você, pra uma safadeza. Você já me conhece e sabe que sou homem bem arranjadinho. Pois imaginei desde o princípio do Departamento de fazer aqui nele, um gabinete da Diretoria artisticamente arranjado, que pudesse bem representar a força de São Paulo e seus artistas. A coisa no princípio foi fácil. Mandei fazer um sofá encaixado na parede, com lugar pra livros por cima e pra bibelôs. A minha mesa também foi desenhada por mim e mais dois pequenos armários pra cantos de parede. Tudo de imbuia clara nacional, de desenhos verdadeiramente maravilhosos. Além dos livros, em cima do sofá-armário, pus um riquíssimo relógio moderno, dado de presente ao Departamento, uma cuia esculpida de Santarém, e uma peneira bordada. Em cima dos armários pequenos pus uma lindíssima galera em metal cromado, presente do dr. Fabio Prado. No chão um tapete vermelho escuro de cor bem funda, e outro dum marrom neutro por baixo da minha mesa de trabalho. Nas janelas cortinas de linho creme em moldura azul e marrom claro, combinando com tapete e estofado do sofá. E por baixo do vidro da minha mesa de trabalho botei três gravuras antigas, um Debret, uma litografia colorida francesa do séc. passado e um mapa da capital da Baía, do séc. XVII. E inda fiz a loucura de comprar com meu dinheiro, um tinteiro em metal cromado, por não aceitar o horrendo que a Prefeitura me mandou. Bom estava com a sala assim linda, mas com uma falta grave, sem quadros. Cavei com o Gomide o milhor quadro dele, que é realmente muito bom, coisa muito recente, que coloquei por cima do sofá. Mas ficou a grande parede principal, que está inteiramente vazia, e que exijo decorar com um quadro definitivo de pintor cá da nossa terra. Logo pra principiar pensei em você mas desisti. Portinari, prêmio norteamericano deve estar muito caro pra meu bolso (está claro que não tenho verba pra essas coisas) e já não posso pedir presente pra ele, é sem-vergonhice. Procurei, procurei, mas não achei outro pra essa parede e pro ambiente que estou criando. Resolvi perder a vergonha. A parede está completamente vazia, e por baixo tem apenas três tamboretes que se enfaixam uns nos outros formando sofá sem encosto. Diga pra cá, companheiro: Você não estará com alguma vontadinha de me fazer presente de algum quadro batuta, não pra mim, mas pro Departamento? Palavra de Mario que o Departamento merece, está fazendo coisas lindas que lhe hei de contar quando for aí em abril; dentre as quais já está em estudos um pavilhão moderníssimo, pra exposições de pintura e escultura, todo em vidro, mármore e madeiras preciosas, que vai ser cedido grátis aos artistas. Vai ser colocado num jardim bem central, de fácil acesso, estamos pensando na praça da República. Além disso o Departamento é visitado por quanto artista e intelectual importante passa por aqui, até professores de universidade norte-americana já me procuraram pra ver o que a gente está fazendo. Não posso, positivamente não posso ficar sem um Portinari pra mostrar. O pedido fica aqui. Bom, si você estiver muito gangento e não quiser dar (juro que não zango, heim!), pelo menos mande me dizer por que preço você me venderia (pra mim, pessoalmente) ou a “Mulher Sentada”, que você fez tirando a figura do “Café”, ou o quadro daqueles três carregadores de sacos de café, vestidos de branco, que também gosto muito. Comprarei um deles, pra mim, e mandarei um ofício ao Prefeito pedindo pra botar o quadro lá, como fiz com as minhas gravuras preciosas. Assim, com a permissão em meu poder, si algum dia sair de diretor do Departamento, posso carregar o quadro comigo, pois não é justo eu dar de presente pra Prefeitura as preciosidades que ajunto.
Bom, já namorei bastante você, estou esperando resposta. Mas responda e com lealdade, com o sentimento de seu coração e... necessidades, certo de que de forma alguma me zangarei, reconheço também os direitos dos outros e sei que este meu pedido é sem-vergonhice pura, embora sem-vergonhice de homem entusiasmado.
Quanto ao resto: a vida continua. Ultimamente tenho estado com seu irmão que me trouxe uma preciosidade, me arranhada pelo Manuel, o Trio de Glauco Velásquez que o Departamento vai executar aqui, em primeira mão. Em troca da caceteação dei ao José o Macunaíma que ele estava desejando reler. O resto é trabalheira pura. Estou agora fazendo o relatório dos trabalhos do Departamento nos sete meses que viveu no ano passado, si publicar, mando um exemplar pra você, si não publicar mandarei uma cópia pra você o que, apesar da má vontade de muitos, da burocracia-tartaruga, conseguimos fazer em tão pouco tempo. Ontem ainda fui ver uns filmes que o Departamento mandou tirar dos índios de Mato Grosso, por um explorador que ia pra lá. Tem uma dança que é documento absolutamente inédito e extraordinário, das coisas mais impressionantes que já vi dos nossos índios. Talvez eu faça um estudo sobre ela.
E mais não digo porque não posso, a chuva está passando e talvez ainda dê um pulo na cidade. Vou me vestir. Ciao. Um grande abraço pra você e lembrança carinhosa pra Maria, do
Mario
O número da minha casa mudou de 108 pra 546.