Alguns dos moradores de rua presentes no Parque da Redenção, em Porto Alegre, são retratados por Iberê de modo a dar corpo a sua quase invisibilidade. Nessas obras, o artista busca capturar o que está por debaixo da pele dos sujeitos – forma que já vinha explorando nas pinturas da série Fantasmagoria, realizadas neste mesmo ano. Aqui, foram modelos os moradores de rua que estavam reunidos junto à Fonte Francesa, chafariz de ferro fundido instalado no Recanto Europeu do parque.
“[...] Acompanhei inúmeras jornadas do artista pela procura dessas imagens que nos ferem com delicadeza, cheias de visualidade e significados. Esses rascunhos já por si são maravilhosos, mas serviam para recriações na volta ao estúdio; surgiam daí guaches sobre papel, elementos novos nas pinturas e potentes gravuras em metal.
Foi num dia desses, quando o Iberê ainda morava na rua Lopo Gonçalves, que saímos a pé para mais um percurso no Parque da Redenção. O artista com o seu caderno de desenhos e eu carregando alguns dos seus pertences. Chegamos na fonte entre árvores, naquele momento riscada pela luz do sol: um cenário de filme. À volta dela vários mendigos conversavam e lavavam as suas roupas. O artista pareceu iluminado. Apenas com os olhos e a mão em movimento, executou desenhos lindos e fluidos como música. Depois num gesto de gratidão pagou os modelos: entregou uma nota de dinheiro a cada um deles e fomos embora. Nesse dia uma figura me provocou a atenção: o homem flagrado de frente, curvado sobre o espelho d’água da fonte, com o olhar fixo no artista e suas costas acima da própria cabeça, passava uma sensação simultânea de dignidade e sofrimento, como se estivesse pronto para carregar o peso do mundo.”
RADAELLI, Gelson. In.: Acervo Iberê: Iberê Camargo – Visões da Redenção. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2020. p. 28.
"Minha contestação é feita de renúncia, de não participação, de não conivência, de não alinhamento com o que não considero ético e justo. Sou como aqueles que, desarmados, se deitam no meio da rua para impedir a passagem dos carros da morte. Essa forma de resistência, se praticada por todos, se constituiria em uma força irresistível. O drama, trago-o na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais profunda que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia a dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida."
CAMARGO, Iberê; MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos guardados: Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 135.