A COMPLEXIDADE DE UMA CAIXA
Entre 1962 e 1963, Lourdes Castro fez um conjunto de caixas repletas de objectos unidos por famílias, cobertos por uma camada de tinta de alumínio que lhes conferia um aspecto paradoxalmente precioso e slick. A palavra poderia ser pop, porque a presença destas caixas é muito próxima do ambiente de assemblage de algumas obras de Richard Hamilton, um dos criadores do movimento em Inglaterra.
Em Paris, onde Lourdes Castro vivia com René Bertholo e onde ambos participavam da pequena comunidade (com João Vieira, Christo, Jan Voss, Costa Pinheiro e José Escada) que publicava a revista KWY, a espuma do tempo trazia os ventos do nouveau réalisme. Este movimento, de que faziam parte Yves Klein, Pierre Restany, Raymond Hains e, mais tarde, Christo (entre muitos mais), partia do princípio de que a realidade era apropriável para o interior do mundo da arte – tudo se poderia converter em imagem artística, desde os cartazes meio arrancados das paredes até aos desperdícios do quotidiano.
É neste ambiente de democracia criativa, num momento em que a arte arrisca a perda da sua aura de excepcionalidade para abraçar o quotidiano, que Lourdes Castro constrói as suas caixas. A sua refinada sensibilidade, no entanto, iria apropriar estas influências de uma forma sofisticada, dando-lhes uma volta de sentido a partir da sua sacralização: a partir de um processo comummente usado em relação a relíquias ou memorália religiosa (o banho de ouro ou de prata), a artista decide banhar os objectos e as caixas em tinta de alumínio que lhes confere uma qualidade única e preciosa. No entanto, essa qualidade única e aurática é conseguida através de um processo que lhes retira a presença manual, o próprio do artístico, para fornecer uma aparência impessoal e industrial. É este paradoxo que as torna tão interessantes, porque despoleta um realismo pop na medida em que o fascínio pelo quotidiano adquire um glamour impessoalizado, como acontece com a maior parte das obras dos artistas que fizeram a pop art.
A estas características (paradoxais e estranhamente coexistentes) junta-se uma terceira: o tipo de objectos recolhidos em cada uma destas caixas de parede – sim, são quadros tridimensionais, o que também lhes confere uma específica originalidade –, podem ser reunidas sobre a categoria do “doméstico”, pertencendo a diferentes momentos, ou formas, da vida doméstica aqui colocada como que em arrumação provisória, em trânsito. São, portanto, o trabalho de uma artista deslocada, emigrada, em pensamento sobre a sua condição – e também sobre a sua condição feminina.
Na simplicidade de juntar umas coisas com outras, Lourdes Castro consegue produzir uma enorme complexidade.
E colocar-nos, sem discursos morais, perante ela.
Delfim Sardo