PEQUENOS DELITOS DO QUOTIDIANO
O mundo contemporâneo é um mundo de acumulações. A viagem, a deslocação no espaço é um dos grandes veículos de acumulação (de imagens, de memórias, de cartões de visita, de souvenirs, de inutilidades).
Jac Leirner é uma artista brasileira que tem efectuado o seu percurso, desde os anos oitenta, a partir desta irracionalidade da acumulação, efectuando exposições nas quais a acumulação arquivada de objectos por categorias dá lugar a novos objectos escultóricos que parecem retirados de uma imitação de obras minimais.
Algumas das peças de Leirner possuem uma clara intenção crítica, seja em relação ao mundo da arte e ao seu sistema fetichizado de circulação de objectos, seja em relação a um contexto social mais amplo. Uma das suas obras mais famosas intitula-se Os cem (de 1987) e consiste numa série de esculturas feitas com intermináveis maços de notas de cem cruzeiros, à data sem qualquer valor devido à hiperinflação brasileira.
Esta lógica de conversão do sentido de um objecto através da sua repetição em séries infindáveis encontra- se também no conjunto de obras genericamente intituladas Corpus delicti, em que se inclui a peça pertencente à Colecção da Caixa Geral de Depósitos. Todas as esculturas são compostas por objectos furtados em aviões, como copos, sacos de enjoo ou, no caso presente, almofadas e cobertores de bordo.
Assim, no frenesim de viagens que é a condenação da maior parte dos artistas contemporâneos num mundo histericamente globalizado, o pequeno delito de furto que estas obras demonstram é quase uma pequena provocação disfarçada de escultura. O seu âmbito, no entanto, possui um eco muito mais longínquo, no dealbar da contemporaneidade brasileira e nos movimentos de vanguarda que se foram constituindo no Brasil a partir do final da década de cinquenta.
É a partir dessa possibilidade de ligação entre arte e vida, protagonizada por Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, que Leirner faz a sua obra, acumulando os restos do quotidiano e organizando um inventário irónico que, ao contrário das suas referências históricas, parece arte porque dela, delinquentemente, recolhe as suas formas.
Delfim Sardo