RESENDE/INSTITUTO MOREIRA SALLES
FOTO AUTOR NÃO IDENTIFICADO
De Sérgio Buarque a Manuel
Bandeira, os intelectuais brasileiros
discutiram a tipologia humana criada
pelo compositor Jayme Ovalle.
O músico paraense finalmente
ganhou uma boa biografia - e ela é
um testemunho vibrante da época em
que a cultura brasileira cabia na mesa
de um bar carioca POR JOÃO GABRIEL DE LIMA
E
screva o nome "Jayme Ovalle" no campo de pesqui-
sa do YouTube e aparecerá, entre os primeiros re-
sultados, um vídeo de Vinicius de Moraes. Clique so-
bre a face descabelada, em preto-e-branco, do poeta ca
rioca. Vinicius discorrerá sobre uma estranha tipologia,
que divide o seres humanos em cinco categorias: "Dan-
tas", "Parás", "Mozarlescos", "Onésimos" e "Kernianos".
Vinicius explica que os Dantas são os puros de coração, os
bem-intencionados. Os Parás, os que buscam o sucesso
- o nome é inspirado nos que vêm do Norte do país para
vencer nas capitais do Sudeste. Onésimos, os sarcásticos,
os extremamente críticos que, por isso, esfriam os ambien-
tes com sua presença. Os Kernianos seriam os estourados.
E os Mozarlescos, os românticos, aqueles que se enterne
cem com o luar de Paquetá. "Eu, por exemplo, sou um Mo-
zarlesco", diz Vinicius no YouTube.
Durante mais de 40 anos, essa tipologia animou as con
versas de bar de duas gerações de intelectuais brasileiros.
A primeira, a geração modernista, de Manuel Bandeira, Di
Cavalcanti, Augusto Frederico Schmidt, Cícero Dias, Sérgio
Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade e Ra-
chel de Queiroz. A segunda, a geração de jovens escritores
dos anos 50, capitaneada por Fernando Sabino, que reunia
os mineiros
Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos e
também o próprio Vinicius.Foi
Manuel Bandeira, aliás, quem
primeiro escreveu sobre a tipologia, num artigo de 1931 pu-
blicado no jornal Diário Nacional, de São Paulo. Na ocasião,
ele relatava uma conversa de bar entre o poeta e editor Sch-
midte o morubixaba dessa estranha pajelança sobre o com
portamento humano, batizada de "Nova Gnomonia": Jay-
me Ovalle, o nosso personagem.
Ovalle é hoje lembrado principalmente como composi-
tor. Mais exatamente, autor de uma única música famosa:
Azulão ("Vai, azulão, azulão companheiro, vai, vai ver mi-
nha ingrata..."), melodia sobre versos de Manuel Bandeira
que mereceu dezenas de gravações pelo mundo. Ovalle
também se pretendia poeta e romancista, mas não teve
talento ou perseverança para criar nada de importante
nessas duas áreas. Mais do que autor, foi um personagem.
Não um personagem qualquer. Inspirou vários dos artistas
citados acima. Foi tema de poemas de Bandeira, Schmidt
e Drummond. Portinari e Di Cavalcanti pintaram seu retra-
to. Fernando Sabino criou um personagem coadjuvante
inspirado nele-o místico Germano-em seu romance mais
famoso, O Encontro Marcado. Agora, finalmente, Jayme
Ovalle ganhou um livro em que é protagonista: a biografia
O Santo Sujo, do escritor e jornalista Humberto Werneck.
A obra não apenas joga luz sobre um artista que poderia
ter sido e que não foi. Ela retrata, com acurácia e vibração,
uma era fascinante da vida cultural brasileira.
"Você não sabe certos cães muito inteligentes, muito
afetuosos, quando começam a olhar fixo para a gente, ga-
nindo dolorosamente? Querem falar e não podem. Ovalle
me dá essa impressão." A definição é de Manuel Bandeira,
numa troca de cartas com Mário de Andrade, e define com
precisão o que foi - ou não foi - o artista Jayme Ovalle. Au-
todidata em piano e violino, ele elegeu como instrumento
o violão e chegou a fazer sucesso nas rodas musicais do Rio
de Janeiro do início do século 20 (nascido em Belém do
Pará, na adolescência mudou-se com a família para a então
capital do país). A vida toda foi funcionário público, em ge-
ral lotado na Alfândega do Rio de Janeiro. Por seu catoli-
cismo heterodoxo, com um pé na superstição, era apelida
do pelos amigos de "o místico". Durante um período em que
morou em Londres, escreveu poemas em inglês - com aju-
da de uma tradutora, pois não falava a língua. Já maduro,
aos 53 anos, casou-se pela única vez, com a escritora ame-
ricana Virginia Peckham, 31 anos mais jovem. Ela tentou dar
forma final a seus poemas, mas o esforço foi em vão. O le-
gado de Jayme Ovalle se compõe, assim, das 33 canções
que compôs ao violão-e das infindáveis conversas em mesa
de bar que inspiraram dezenas de artistas.
Nisso, era imbatível. Em sua maneira anárquica de fa-
lar, destilava vários achados por copo. Um bom exemplo é
uma de suas poucas entrevistas, dada em 1953 para Vini-
cius de Moraes e Otto Lara Resende, então a serviço do se-
manário Flan (veja foto ao lado). Eis alguns dos achados de
Ovalle: "A morte é a única coisa que é completamente nos
sa. A única coisa individual, própria, que a gente alimenta
desde que nasce. Todo o resto não nos pertence. Nosso nas.
cimento, por exemplo, é dos nossos pais". Ou então:"Todo
mundo é criado com o dom da poesia, e só deixa de ser po-
eta porque perde a inocência. Quanto mais um homem cres.
ce carregando consigo a sua inocência, maior poeta ele é".
(No livro O Encontro Marcado, Fernando Sabino imita o jei-
to de falar de Ovalle de maneira magistral. Eis um "ovallis-
mo" do personagem Germano: "Londres ninguém nunca
viu: se tem fog não se vê, se não tem fog não é Londres".)
De toda essa conversa de botequim, o destaque é mes.
mo a "Nova Gnomonia". O capítulo de O Santo Sujo que a
descreve diz menos sobre Ovalle do que sobre a vida cul-
tural da época. Era um meio em que todos se esbarravam
quase que diariamente, e a tipologia de Ovalle era o espe-
ranto em que se comunicavam, o espelho em que se reco-
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