UM LUGAR ÍNTIMO
Iniciado na década de sessenta, o percurso da artista brasileira Carmela Gross atravessou os últimos quarenta anos da arte brasileira com uma presença constante e marcante para o contexto que nasce das vanguardas da década de cinquenta e desagua num novo entendimento da escala e do carácter público da obra de arte.
A obra que incorpora a Colecção da Caixa Geral de Depósitos intitula-se Ilha e pertence a uma série de trabalhos que lidam com a delimitação de espaços, na parede ou no chão, a partir de um desenho configurado como uma fronteira física entre o exterior e o interior de um espaço definido como fechado.
Há nesta peça uma alusão a duas ideias que atravessam a poética de Carmela Gross: a delimitação de um espaço – que a artista tanto desenvolve de forma literal, condicionando a movimentação do espectador –, e a ideia de utopia – na sua ambivalência entre lugar ideal e inexistente, como Thomas More a definiu.
Este lugar utópico em Carmela Gross surge por inúmeras formas ao longo do seu percurso, parecendo que a palavra e o desenho são os processos de que a artista se serve para a sua prossecução. O desenho é um dispositivo muito peculiar na forma como é desenvolvido no contexto do seu trabalho, na medida em que é frequentemente desmaterializado em luz ou produzido com recurso a construções tridimensionais, a maior parte das vezes sob a forma de instalações que ocupam o solo e que, por essa via, lidam directamente com a corporalidade do espectador, a sua movimentação no espaço e, nesse sentido, a sua liberdade. É o que acontece com a instalação Em vão, apresentada na Oficina Oswald Andrade em 1999, na qual um labirinto de cintas negras colocadas entre a colunata de um átrio condicionava a circulação dos espectadores.
A peça que pertence à Colecção da Caixa, no entanto, liga-se à instalação Alagados (produzida mais tarde, em 2000), na qual é a tridimensionalização do desenho convertido em fronteira, primeiro na parede e, posteriormente, no chão, que guia o olhar e realiza a passagem entre o universo da linha e o espaço.
Compreende-se facilmente que a relação entre lugar (presente na tónica utópica), marcação subjectiva do espaço através do desenho (que a artista desenvolveu desde os trabalhos da década de setenta) e definição de espaços públicos modificados e transformados para uma diferente experiência física do espectador pertencem a um mesmo universo de relação entre público e privado, entre espaço social e lugar íntimo.
As ilhas são isso mesmo: lugares delimitados, grandes mónadas cercadas que tanto podem constituir metáforas da nossa condição pessoal, como da utopia de um lugar onde a intimidade é a derradeira condição.
Delfim Sardo
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