Ouve-me

ENTRE O VOCATIVO E O SILÊNCIO
A sequência de imagens mostra um pormenor de um rosto, uma boca de mulher que diz algo na mudez da imagem. Sobre a boca está escrito “ouve”, mas o vocativo, preso na limitação surda da fotografia, parece ainda reforçado pela espécie de sutura que o desenho, escrito na boca, marca.
Este painel fotográfico de Helena Almeida é parte de um conjunto de trabalhos que a artista realizou entre 1978 e 1979 intitulado sente-me, ouve-me, vê-me, um conjunto de peças em diversos suportes: maioritariamente fotográfico, inclui também uma peça de som e um vídeo.
O conjunto é impressionante no contexto da arte do final da década de setenta e continua a constituir um momento fulcral no trajecto da artista, na medida em que a sua proposta de constituir, a partir da imagem, uma intensa reflexão sobre a questão da identidade, do corpo, do lugar, do valor da comunicação em arte e a sua relação com a mais epidérmica estética da sensibilidade, encontra aqui uma expressão única, intensa e irónica.
Nesta série de trabalhos, Ouve-me diz sempre respeito à boca, materializando-se, por vezes, noutras séries de imagens, num espectro que sai da boca da artista, ou na imagem fantasmática em vídeo do corpo da artista que atravessa o plano da tela. Vê-me é um trabalho sonoro; Sente-me diz respeito à relação do corpo com objectos inanimados. Existe, como em muitas obras de Helena Almeida, um lado finamente irónico, centro deste conjunto de obras apresentadas pela primeira vez na Galeria Erika + Otto Friedrich, na Suíça em 1979 (e só depois reunidas em exposição e livro em 2004 no Centro Cultural de Belém).
Em todos os momentos deste projecto é o corpo da própria artista que é apresentado, que interage com a superfície da tela, com os diversos dispositivos que o identificam. É, no entanto, também o nosso corpo o destinatário destas imagens, porque ver um corpo faz-nos ver o nosso próprio corpo nele projectado.

Delfim Sardo