A pintura de Mily Possoz define-se nas décadas de 20 e 30 liberta de certo pendor naturalista, que estivera presente na sua pintura do princípio do século, revelando na construção de temas, por vezes de raiz oitocentista, uma liberdade de execução e fascínio pela própria pintura, consentâneos com uma modernidade que encontra os seus modelos em Marquet e Dufy, ou nas estilizações gráficas da época. Nesta obra não são os valores feéricos mais comuns da sua pintura que se exibem, antes procedendo a um trabalho de natureza mais substancial. Há uma curiosa morfologia circular que obsessivamente enforma os elementos e se transmite à composição criando ritmos dinâmicos. Os volumes, como é o caso das árvores, apresentam-se individualizados e dispostos serialmente, como também acontece com as arcadas da ponte, cujo reflexo na água, muito intenso, completa os círculos de modo a enfatizar a morfologia daí resultante. A sua repetição responde ritmicamente ao arvoredo. Os elementos que povoam o primeiro plano, sobretudo os automóveis, são tratados com uma deliberada ingenuidade, apresentando as rodas destacadas com frontalidade, sem a implícita distorção perspéctica. A luz quase frontal cria reverberações matéricas nas águas e no arvoredo da outra margem, perto do Louvre, ou nas nuvens. No tratamento substancial da luz espelhada no rio, disposta por pinceladas curtas e rectangulares, sobretudo entre o arvoredo, é detectável uma certa influência da pintura de Eduardo Viana, que a artista admirava. Estes aspectos definem um lugar extremo na pintura de Mily Possoz em que o agenciamento de uma forma se conjuga e revela numa infinidade de motivos, de modo a organizar um espaço ritmado em que a substancialidade pictórica ultrapassa as suas mais tradicionais estilizações ao gosto da época. (Pedro Lapa)