Vasco Fernandes, o mítico Grão Vasco, é uma das personalidades mais fascinantes da arte portuguesa. Por um lado, pela qualidade da sua obra ou pelo poderoso processo criativo que o distingue e lhe confere um estatuto especial no contexto da pintura do renascimento. Por outro, pela aura de lenda, mito e magia que durante séculos o envolveu.
S. Pedro, do antigo retábulo da capela lateral direita da Catedral de Viseu, pintado por volta de 1529, é hoje o maior ícone do seu talento e uma das pinturas mais notáveis do património pictural português, com uma dimensão internacional inegável. Numa escala excecionalmente grande, comum aos restantes quatro retábulos que fez para o mesmo espaço catedralício e para o mesmo encomendante, o célebre D. Miguel da Silva, construiu uma verdadeira imagem de propaganda da supremacia do poder espiritual sobre o temporal.
A monumentalidade do apóstolo, sentado num trono pontifical de arquitetura italianizante, em atitude de bênção e com o olhar dirigido a um espaço absoluto, resulta da confluência de uma série de estratégias representativas.
O modo como estrutura a composição é essencial a essa monumentalidade impositiva - num esquema simétrico, inscreve a figura no centro e define-lhe o espaço e a escala que permite trabalhar a dimensão do perto, do tangível. Através de duas aberturas, a ladear o trono, cria o efeito contrário, isto é, representa o espaço em profundidade e conquista para a imagem a noção do longe até ao infinito. Ainda que o prolongamento da visão às duas paisagens laterais sirva também necessidades narrativas, já que são duas cenas alusivas à vida do Apóstolo que lhe correspondem - na esquerda
O Chamamento do Pescador e na direita «Quo Vadis?
» -, é sobretudo a conquista de monumentalidade para a figura no primeiro plano da representação, a figuração de um verdadeiro papa entronizado, que está aqui em jogo. Fundamental para a acentuar é a absoluta autonomia da figura face ao trono, que obtém através da manipulação extraordinariamente sensível da luz; um exercício que não tem paralelo na restante pintura portuguesa do tempo.
Incidente da direita superior, quase rasante, a luz assume diferentes níveis de intensidade, seja para exprimir volumetricamente as formas do trono e do apóstolo, seja para as espacializar e lhes conferir autonomia. A projeção da sombra da figura sobre a metade esquerda inferior do espaldar, bem como o feixe de luz rasante entre a figura e o trono são desse ponto de vista essenciais. Mas a força expressiva do S. Pedro é também o resultado de um virtuoso e paciente trabalho de elaboração pictural, seja na poderosa caracterização fisionómica do rosto, seja nas formas exuberantes do pluvial.
De facto, à semelhança dos ritmos da composição, toda a superfície do quadro é, de um ponto de vista plástico, extraordinariamente programada e elaborada. A decoração da capa ou pluvial em brocado, com delicadíssimos motivos ornamentais, inúmeras joias incrustadas e anjos pintados que seguram os instrumentos da Paixão, o trabalho minucioso da tiara ou dos anéis sobre mãos enluvadas, os elementos decorativos do ladrilhado perspectivamente traçado, denunciam o virtuosismo da sua técnica.
Na parte superior do espaldar do trono, cujo limite não chega exatamente a representar, os elementos decorativos são também modelados primorosamente, através de uma gama de tons cinza, sempre em acordo com a maior ou menor incidência da luz. Uma concha simétrica de plasticidade notável, seguida de uma moldura de enrolamentos, ocupa o espaço central, enquanto a superfície restante é decorada com elementos vegetalistas entumescidos, de volumetria acentuada, que repete com pontuais variantes os elementos decorativos das duas tiaras que configuram simetricamente os remates laterais. Estas formas, algumas já manifestamente renascentistas, como a concha, e outras ainda "manuelinas", como os elementos vegetalistas entumescidos, os capitéis e bases das colunas ou os elementos decorativos do lambrim que decora o muro, quase invisível – uma ornamentação vegetalista em friso contínuo, ao modo de grutescos, composta por uma taça com folhas semelhantes à do espaldar do trono, e um feixe vegetalista do qual brotam quatro romãs – mostram que o S. Pedro, em termos da categorização estilística consagrada na História da arte, que tem a pintura italiana como matriz do Renascimento, é ainda uma obra híbrida, eclética, de transição entre uma coisa e outra.
Mais importante do que este tipo de classificações, sempre necessariamente redutoras e com utilidade relativa, é o justo entendimento dos motivos que levaram o pintor a centralizar o seu trabalho na busca de efeitos de carácter linear e tonal, isto é, num tratamento tão acutilantemente realista da forma nos primeiros planos, e o contrário, na perda de definição da forma, até à sua diluição em efeitos atmosféricos, nos últimos planos. Justamente, porque a pintura se assumia como representação, porque a procura da tridimensionalidade, não obstante a dimensionalidade do suporte, o princípio da verosimilhança representativa através da imitação da natureza, era ainda o ponto central do debate e o ponto fulcral de onde emergiram, e para onde convergiam, as novas teorias e as novas experiências artísticas.
Na predela, durante o último século trocada com a do retábulo Baptismo de Cristo, e remontada agora de novo de acordo com a constituição original, representa-se meio apostolado - S. João Evangelista e Santo André; S. Bartolomeu e S. Judas Tadeu; S. Paulo e S. Tiago.
Além do emblemático S. Pedro, D. Miguel da Silva encomendou mais quatro retábulos, com dimensão e forma idêntica, para as diversas capelas da Catedral. O tema Baptismo de Cristo destinou-se à capela lateral esquerda, dedicada a S. João Baptista, em correspondência, portanto, com o S. Pedro. Nas capelas dos topos do transepto, localizavam- se o Pentecostes, a Norte, e o Calvário, a Sul, enquanto o S. Sebastião se destinou a uma capela do claustro que o mesmo bispo mandou também edificar.
A intervenção de Gaspar Vaz nestes projetos, especialmente no Pentecostes, no Baptismo de Cristo e no conjunto das predelas dos cinco retábulos, justifica alguns sensíveis desníveis de qualidade. Dalila Rodtigues