"Pouca gente conhece o antigo aspecto do Riacho, esse curso d’água poluído, que outrora corria paralelo a um velho casario ali existente, na rua da Margem, na Cidade Baixa, andando na direção do Guaíba, onde, creio, desaguava. Na época das chuvas, era, às vezes, caudaloso e, então, transbordava, alagando as ruas. Casas corroídas pelo tempo espelhavam-se em suas águas turvas, que, como os espelhos, refletem, mas, como esses, não guardam imagens. Lembro-me dos salgueiros-chorões que tocavam com seus longos ramos esse espelho baço. Canoas coloridas ancoradas às margens; outras vezes, movimentando-se preguiçosas à força de remos indolentes.
Essa visão instigou jovens estudantes de belas-artes, entre eles, Maria, minha mulher. Foi ali, à margem desse Riacho, que pintei meu primeiro quadro e onde começou nosso namoro. Com espessa pasta – a tela e as tintas eram dela – fixei a luz fugitiva dessa manhã de sol sobre aquelas águas lodosas. Árvores desgalhadas, surradas pelo vento, apontam para um céu de cobalto. Plasmei essa imagem: assim começa o pintor. Não se pergunte para onde vão as águas, que andam, que andam, que nunca param e não se cansam.
Onde está a velha figueira que acompanhava a Ponte de Pedra? Uma parece que faz falta à outra. Eram companheiras. Dizem que os vegetais sentem e ouvem. Talvez amem. Se isso é verdade, eles também têm alma. Não me surpreenderia, pois, que, numa noite de lua escondida, alguém que por ali passasse visse seu fantasma, junto à ponte.
Na memória, o antigo permanece. No passar vertiginoso do tempo, o instante quer ficar. O pintor é o mágico que imobiliza o tempo. Esse casario de que falo, essas árvores desnudadas pelo inverno, esses salgueiros-chorões, essa água verdosa, com manchas de sol, todas essas coisas de que falo estão nos quadros que ali pintei. São registros, são emoções transformadas em cor. A sua realidade e a sua eternidade estão na palavra do poeta e na visão do pintor."
CAMARGO, Iberê; MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos guardados: Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 101-102.
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