UM RAIO DE LUZ
Noronha da Costa também fez, como se pode ver, escultura, para além dos filmes e da pintura que o têm ocupado regularmente.
As suas esculturas são pequenas construções que usam mecanismos visuais muito simples mas de enorme eficácia, quase sempre com recurso a espelhos e a vidros que produzem situações quase mágicas na sua ilusão óptica. Esse é o seu primeiro fascínio: o mistério do aparecimento ou do desaparecimento, a prestidigitação da imagem que se forma ou desvanece. Mas não é o único, porque progressivamente se vai instalando a consciência de que o dispositivo visual está ao serviço da evocação de um momento ou de uma tipologia da história da arte, de uma afirmação sobre a natureza ou a falsidade das imagens, de uma meta-escultura.
A caveira que traz para o interior da obra a vanitas, a presença da morte, projecta o reflexo refractado da sua imagem sobre a esfera, que funciona como uma imagem projectiva do mundo e vice-versa: também a esfera a envolve colocando-a no seu interior. A imagem que o vidro de duplo reflexo constrói depende da nossa posição relativa, fazendo-nos passar da imagem da caveira que se vê, narcísica, à imagem fúnebre do momento em que a sua imagem se projecta. Como nos mecanismos do dealbar do cinema, a luz constrói a realidade efémera da imagem para uma localização particular do espectador. São histórias de fantasmas, de ectoplasmas que atravessam a memória do cinema de Murnau, a anamorfose na pintura de Hans Holbein, um imaginário gótico que irrompe.
Por isso, esta escultura de Noronha da Costa – antevisora de muita pintura que viria a efectuar durante a década de setenta – é uma máquina poderosa e eficaz de imaginar, atravessando-nos como uma vertigem, desde a descoberta do efeito até à mnemónica que acorda.
Pouco se pode esperar mais da obra de arte: que o maravilhoso seja rapidamente fulminado pelo poder da convocação.
Delfim Sardo
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