CO-1575
Dionísio, Mário. [Carta] 1955 jun. 4, Lisboa [para]
Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. [datilografado]
Querido Amigo:
Só hoje lhe agradeço as suas últimas notícias, embora não se passe uma semana sem que pense em escrever-lhe. Um ano de muito trabalho e bastantes preocupações – eis a razão do meu silêncio.
Como vai Maria e esse “terrível” João Candido, que já nem deve recordar-se de quando lhe chamavam “terrível” por pôr em reboliço aquele quarto tão nosso conhecido do Hotel Vernet?... Ultimamente andamos inquietos com notícias desencontradas a respeito de uma doença, possivelmente de tipo alérgico, que o não deixava trabalhar. Mas o arquiteto Edvaldo Paiva, que tive há pouco o grande prazer de conhecer, na sua passagem por Lisboa, garantiu-me que o mal tinha desaparecido. É efetivamente assim? Em que ponto vão os trabalhos dos grandes murais para o palácio da ONU?
Não sei se já calculou que o primeiro motivo desta minha carta de hoje é felicitá-lo vivamente pelas ilustrações que fez para A Selva de
Ferreira de Castro. Foi um grande prazer, depois de tanto tempo, ver autênticos originais seus. Não fotografias, reproduções, mas a própria pintura. Acho estes trabalhos, quer pela integração no espírito da obra, quer pelo seu valor plástico intrínseco, admiráveis. Aqui terão de esbarrar todos os sorrisos amarelados que geralmente envolvem a palavra “ilustração”, como terão de esbarrar todas as críticas fáceis ao moderno, supondo-o levianamente incompatível com a expressão direta e combativa do homem vivo dos nossos dias.A sua obra continua a ser um verdadeiro e grande exemplo. Valem por muitos discursos, por muitos artigos e certamente muito mais que todos os decretos... Abraço-o comovidamente por estas doze “pequenino formato” em que se agita em liberdade a dor, o sofrimento, a esperança e a força de um mundo.
O segundo motivo por que lhe escrevo hoje é querer saber o que há de autêntico ou de deturpado – ou simplesmente de incompleto -, nas frases que lhe são atribuídas num artigo, “Vai a arte acabar?”, publicado no “Jornal de Letras” do mês de Abril, que por acaso me caiu ontem debaixo dos olhos. Fala-se nele duma “recente entrevista” a um jornal, que Você teria concedido, mas que eu tenho aqui muita dificuldade em obter. Será maçá-lo muito pedir que ma envie? Como sabe, estou sempre muito interessado nos seus depoimentos e agora o interesse cresce porque, estando a
escrever um livro, intitulado “A Paleta e o Mundo”, sobre o que se me afigura de mais importante de entre os problemas levantados pela pintura de hoje, necessito de toda a documentação possível sobre os casos de que me ocupo, como o seu. O livro é publicado em fascículos, de que os dois primeiros já saíram, e constituirá dois volumes. Mal o primeiro esteja concluído, enviar-lho-ei. Claro que posso, lendo nas entrelinhas, perceber em parte o que a sua afirmação transcrita implica. Mas isto não chega. O artigo é feito de tal modo que somos levados a concluir que você será de uma opinião que é precisamente a contrária do que suponho ser a sua. Por isto mesmo, ouso incomodá-lo mais uma vez. Desculpe.
E, por hoje, adeus. Não tenho muito mais tempo neste momento e receio que você também o não tivesse para ler-me se me alongasse muito mais. Até breve.
Saudades nossas para todos vós. E um grande abraço do amigo certo e admirador de sempre
Mário Dionísio
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