CO-608
Estrela, Arnaldo. [Carta] 1952 nov. 3, Rio de Janeiro, RJ [para]
Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. 2 p. [manuscrito]
Meu caro Portinari
Atendendo ao teu oferecimento, que me sensibilizou deveras, aqui te envio o histórico dos fatos.
Fomos convidados, Mariuccia e eu, pela “Cultura Artística” de B. Horizonte, para um recital. Tudo combinado, inclusive data, com um mês de antecedência, ocorre o inesperado: na “véspera” da data do concerto, recebo um telefonema de lá. Era o diretor-presidente da “Cultura”, avisando-me que o concerto não se realizaria e que ele viria ao Rio em novembro e me explicaria. De fato, há dois dias ele veio à minha casa e explicou-me. A sala tinha sido tomada com muita antecedência pela Cultura, cuja diretoria foi surpreendida à última hora com um aviso de que a Secretaria de Educação não cederia mais a sala de um “próprio estadual” para um concerto meu, pois eu dou tudo que ganho ao Partido.
Isso é monstruoso, pois equivale a impedir-me de exercer minha profissão. Além disso, não corresponde à orientação federal – estive 5 anos na Europa, licenciado por Dutra e por Getulio, para realizar concertos no exterior. Como é que o governo vai proibir-me de realizar concertos no Brasil? Incoerência! Além disso, sou catedrático da Esc. de Música da Universidade do Brasil. Nestes últimos meses toquei em S. Paulo a convite do Departamento de Cultura da Prefeitura de S. Paulo; no Rio, toquei no Municipal e no Ministério da Educação.
Logo, ou há cretinice de algum funcionário, ou há – o que me parece mais certo – intriga de inimigos e despeitados. Estou certo de que o governador
Kubitschek ignora tudo isso e não endossará a cretinice. Como o presidente da “Cultura Artística” me declarou que deseja muito realizar o concerto e o realizará se eu obtiver a sala, penso que um pedido ao Kubitschek, explicando bem os fatos, será decisivo.
Última “remarque”: qualquer suspeita de que este concerto tenha uma finalidade política, direta ou indireta, é completamente descabida. Basta assinalar: a “Cultura Artística”, que me contrata, tem como vice-presidente o Dr. Clovis Salgado, que é vice-governador do Estado.
Enfim, meu caro Portinari, eu penso que este caso vale a pena de ser combatido, a fim de que não se estabeleça um precedente perigosíssimo para todos os artistas.
Desde já muito grato pelo que você puder fazer. Pensei em falar ao Oscar, porque sei que é também amigo do Kubitschek. Mas deixo de fazê-lo em virtude do oferecimento tão amável que você me fez ontem.
Um grande abraço do
Arnaldo Estrela
2