"A principal virtude da crítica, frente a telas tão impressionantes, talvez seja saber calar-se. E só consentir palavras prementes, inevitáveis, que tenham o poder de transmitir a perplexidade duradoura que essas pinturas imprimem em nossa percepção. De fato, não pedem contemplação e sim convívio espiritual. Tudo nelas — desde a escala formidável até a sabedoria trágica de sua visão retrospectiva — exibe uma densidade e uma intensidade existenciais que não se colocam à disposição do olhar. O pensamento visual promove aqui, a contracorrente, a vontade de permanência do singular: resistindo à deliqüescência e à desqualificação generalizadas das aparências, típicas de nosso cotidiano, tais obras destinam-se a ficar.
Mas é um estranho espetáculo, talvez uma espécie fascinante de contra-espetáculo, o que finalmente apresentam. Trazem à luz o fluxo do tempo e sua capacidade aterradora de dispersar e dizimar. E, no entanto, todo o terrível que surge, surge com um brilho, uma atualidade, fruto da determinação de um Eu lírico empenhado nada menos do que em redimir a vacuidade, a própria futilidade da vida.
Inspirado por uma ética da auto-superação, comum aos expressionismos no sentido lato, a poética de Iberê Camargo seria uma declaração enfática em favor da repotencialização constante da vida. O real será movimento, esforço e ânsia de realização, ou será apenas uma vã esperança, ilusão medíocre de coerência e harmonia. A prática da pintura, no contexto da modernidade tardia, consiste no discreto exercício heróico de renovar a dinâmica plástica da vida: atentar, acreditar naquilo que vemos, senti-lo plenamente, eis o que se torna mais e mais difícil no receptivo Império da Imagem. [...]
Não há pois como decidir se contemplamos o olhar opaco da idiotia absoluta ou a fisionomia compreensiva, ironicamente implacável, da lucidez integral. Nem há garantias que o dilema seja crucial para a experiência estética dessas obras. Existe, sim, quero crer, um fato inegável: ao evidenciar com semelhante grau de virtuosismo a miséria, a demência do presente, essas telas tratam, na medida de seu alcance, de salvá-lo. E o que viéssemos a especular não passaria provavelmente de uma antecipação ociosa e pretensiosa. Todos os que se disponham a enfrentá-las terão com certeza que encontrar as suas próprias palavras para não conseguir defini-las."
BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo. DBA Artes Gráficas: [São Paulo], 1994. p. 87-93.
"[...] A onipresença do tema da roda de bicicleta poderia muito bem parecer uma retomada crítica de Roda de bicicleta, de Marcel Duchamp. O mestre da vanguarda havia feito dessa roda um simples ready-made, um objeto retirado do mundo quotidiano pela vontade teórica do artista para tornar-se objeto de arte no espaço abstrato do museu. Iberê, ao contrário, recoloca essa roda mítica no quotidiano e, assim fazendo, dá-lhe novamente um valor humano e pictórico. É a sua maneira de pensar a alegoria do retorno de O filho pródigo, de De Chirico: contra a ironia aérea de Duchamp, Iberê brada sua preferência pela tragédia terrena."
LEENHARDT, Jacques. Iberê Camargo: os meandros da memória. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 35.