"[...] Nada mais profundo do que a superfície do mundo, alertava Camus. Nesse sentido, os carretéis me parecem um emblema plástico casual perfeito para designar nossa condição imperfeita de seres atirados ao real – a sua esquisita simetria, a sua instabilidade elementar, acresce o essencial buraco negro de sua profundidade. Buraco que, em geral, salta abrupto aos olhos, assinalado frontalmente pelo gesto nervoso e pelo óleo espesso, expletivo eloquente a pontuar o discurso inflamado dos quadros. O que anunciaria ele senão a angústia e a volúpia da redescoberta incessante da profundidade? Eis o que, longe da tradicional elevação sublime ao infinito, nos incita a estreitar nosso contato ansioso com a matéria multiforme do real para experimentá-lo de modo mais íntimo.
Os carretéis foram se trans-formando assim em agentes catalisadores, núcleos propulsores de espaço. Através da investigação sistemática de sua morfologia ambígua cumpria-se o ideal cubista da interação completa entre figura e fundo. Mas, ao invés de proceder à dedução analítica dos componentes da Forma ou promover a síntese entre planos múltiplos, o transe expressivo de Iberê preferia recorrer dramaticamente às contrações, distorções e expansões dos perfis da figura até 'tomar' o fundo e magnetizá-lo. Ora pela propagação de energia plástica, ora inversamente por seu poder de concentração, a malha cubista tendia a fechar-se graças à própria abertura voraz das figuras e sua capacidade de imprimir ao espaço a sua forma – a operação não consistia obviamente em pintar carretéis no espaço e sim transfigurar o espaço em carretel."
BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo. DBA Artes Gráficas: [São Paulo], 1994. p. 74.
"A figuração foi progressivamente abandonada a partir do final da década de 1950. Devido a uma permanência forçada no ateliê por motivos de saúde, Iberê voltou-se a representação de objetos. Essa etapa de sua obra deu início ao estudo da forma emblemática dos carretéis, que evocavam uma lembrança da infância, quando vasculhava as gavetas de sua casa à procura de tesouros e encontrava esses objetos já sem linha, em sua forma pura. Para Iberê, eles foram tema e elemento formal simultaneamente. Nessa fase de amadurecimento e de consolidação de sua obra, as figuras migraram progressivamente da figuração a abstração, mudando os lugares nos quais habitavam. A profundidade, representada pela existência de figuras sobre um fundo, desapareceu em prol da planaridade, na qual os elementos encontravam-se todos sobre uma mesma superfície.
Da tela sem título, de 1958/1959, para Ascensão I, de 1973, pode-se verificar essa passagem. No início, os carretéis ainda se encontram representados em um espaço que sugere a tridimensionalidade, mesmo que sintetizada. Com a continuidade das pesquisas formais, figuras e fundos constituem uma única e mesma superfície. Iberê marcou essas obras por novas relações figura-fundo, pela matéria que constitui corpos, pelas repetições que constroem o novo - desdobramentos como transgressões."
CATTANI, Icleia Borsa. Paisagens de dentro: as últimas pinturas de Iberê Camargo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2009. p. 12.