UM RETRATO É SEMPRE (TAMBÉM)
UM AUTO-RETRATO
Para Álvaro Lapa os cadernos são retratos.
São elegias, homenagens a escritores extraordinários e surgiram em viagens de autocarro em 1975 quando era professor numa escola preparatória.
Os cadernos são ícones, e, como os ícones, não representam nada senão uma participação na obra de Michaux, de Sade, de Fernando Pessoa, de Mallarmé, de Antonin Artaud, de Malcolm Lowry. A selecção dos homenageados nasce da própria paixão que Lapa possuía por estes escritores que conheceu em momentos diferentes
da sua vida, apresentados por Vergílio Ferreira, por José-Augusto França ou descobertos de moto próprio. Como não representam nada são campos abertos à nossa imaginação – porque é que o caderno de Sade tem uma forma que faz lembrar uma pintura de Barnett Newman? Porque é que o caderno de Michaux parece um outdoor? O que quer dizer o texto “Perninhas / à chinês / ludetos” no caderno de Artaud?
Aos costumes nada disse, mas ficou registado, na belíssima e longa entrevista que lhe fez Jorge Silva Melo, que estas elegias são auto-retratos.
São retratos de si mesmo aos ombros dos escritores que Álvaro Lapa admirava, com a aparente displicência de decidir pintar o que não se consegue representar.
Como ele próprio disse, há um carácter snob nesta ideia de homenagem, no sentido etimológico do termo: senza nobilitate. Nesta ironia para consigo próprio e com a natureza da prática artística está contida a sua forma peculiar de entender a pintura: para Álvaro Lapa a prática da pintura sempre foi um processo fugidio, para o qual o virtuosismo constitui a maior barreira. Assim, as suas pinturas são conseguidas a partir do uso de processos de pensamento oriundos da literatura, da filosofia, da experiência pessoal e que, portanto, se contorcem no interior das imagens. A pintura de Álvaro Lapa é uma pintura cujas regras são aquelas que ele próprio definiu no interior de um processo que é assistemático e sempre emergente de uma ficção de auto-representação: do lugar e de si mesmo, como paisagens ou como retratos.
E por isso estes “cadernos” são retratos ficcionados que contam a história irónica da sua pintura como um jogo de fracassos e do seu reconhecimento.
Por isso é que os auto-retratos de Lapa são “auto auto-retratos”.
Porque auto-retratos são já todos os outros; aqueles que deliberadamente o pretendem ser, pertencem ao domínio inevitável da tautologia.
Delfim Sardo