ESPECULAR
A obra de Fernanda Fragateiro ocupa um lugar pouco comum na arte portuguesa recente porque define situações escultóricas que vivem, simultaneamente, de duas instâncias diversas do entendimento do que pode ser a escultura. Por um lado, são peças tridimensionais no espaço que lidam com referências da História da Arte do século XX, desde as vanguardas russas, passando pelos momentos fundadores do movimento moderno. Por outro lado, são dispositivos que geram situações de uso efectivo pelo espectador, como se a razão da sua existência estivesse sempre vinculada a um primado do exercício de uma função, a maior parte das vezes destinando- se a serem fruidas colectivamente.
Este duplo entendimento da escultura – como forma, mas também como função –, tem um eco que é também duplo: tanto possui uma presença poética como um destino prático, sendo notório que este último está comprometido com uma função dialogante no sentido em que convida o espectador a experienciar uma determinada vivência comunitária da arte.
Nesta proposta estão patentes entendimentos da arte e da estética que recuam, na sua eficácia enquanto situação para o espectador, à ideia (já defendida por Schiller no final do século XVIII) de que a estética representa o passaporte para a consolidação das comunidades humanas porque convoca a convivialidade, fazendo, pelas relações entre sujeitos que propõe, as comunidades humanas tornarem-se mais humanas.
É no entanto importante também notar que estes princípios usados por Fernanda Fragateiro são conseguidos através de um grande rigor na forma dos objectos que constrói, na medida em que a atenção que a artista dá ao acabamento dos elementos que configuram as suas esculturas e instalações materializa-se na fisicalidade táctil das madeiras que usa, no rigor dos espaços que desmultiplica pelo uso de espelhos ou nas subtis referências que nos estimula a decifrar.
Nesta instalação, que a artista realizou em 2000, os bancos que convidam o espectador a sentar estão cobertos com almofadas que glosam pinturas de Piet Mondrian. Na estante há uma colecção de livros colocados à disposição do visitante. A biblioteca possui um único tema: são obras de artistas que se suicidaram. Se nos sentarmos nos bancos somos convertidos em espectadores-leitores, confrontados com a nossa condição.
Lá estamos, definidos como figuras contra um fundo, reflectidos no confronto com aqueles que terminaram a vida pelas suas próprias mãos.
Juntando duas obras que nasceram autonomamente (os Bancos e a Estante), a artista cria uma situação que demonstra essa dupla condição da sua escultura e cujo sentido só pode ser construído pelo uso. Vazia, a escultura é como uma máquina parada que necessita de ser operada por alguém.
É uma pequena sala trágica e nela está, como em qualquer tragédia, a sua força especulativa.
Quando a usamos, compreendemos por fim que só somos espectadores de nós próprios, não das obras de arte.
Delfim Sardo
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