Bicho no chão

O ELO PERDIDO
António Dacosta é o elo entre o modernismo surrealista português da década de quarenta do século passado e o pós-modernismo que cruzou a pintura na década de oitenta.
Precisamente em 1940 Dacosta realizou, com António Pedro e Pamela Boden, aquela que seria a primeira exposição surrealista em Portugal. Coincidindo com a Exposição do mundo português que cantava, em Belém, a glória colonial portuguesa, a exposição da Casa Repe mostrava um outro lado da cultura portuguesa, menos monumental, mais misterioso e sombrio. António Dacosta viria a abandonar a pintura, quando residia em Paris, em 1949, permanecendo uma densa névoa sobre a sua obra surrealista parcialmente perdida num incêndio que destruiu o seu ateliê no Chiado em 1944.
Em 1983, inesperadamente e em sequência de um lento e discreto retomar da pintura, Dacosta realizou uma exposição em Lisboa e, posteriormente, em 1988, uma retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian.
As novas pinturas regressavam à procura de uma poética e de uma imagética heróica e melancólica que se situava no centro do “retorno à pintura” que os expressionismos dos anos oitenta trouxeram por toda a Europa.
No centro desse processo luminoso e sensível, Bicho no chão é uma obra singular, quase abstracta e fugidia. Se a serpente que é o único motivo da tela possui uma conotação mitológica próxima da sua procura presente nas outras peças que pertencem à Colecção da Caixa Geral de Depósitos, a luminosidade do chão, a abstracção da superfície da tela e a ténue réplica do réptil que ocupa o canto superior direito da tela transformam-na numa imagem rara e singular. Insular, como ele gostaria de ouvir dizer.

Delfim Sardo