"O trabalho de Iberê Camargo foi, desde o início, uma luta para aceder a plena dimensão da pintura, como a concebe a tradição ocidental a partir do renascimento, num país onde ela praticamente inexistia. Em certo sentido, portanto, sempre aspirou à condição de pintura culta. A sua vocação moderna só lhe seria acessível às custas de um embate profundo com a tradição. Compreender Picasso, por exemplo, implicava estudar e absorver as lições de Velásquez. A vontade de refazer radicalmente a pintura, que de certo modo anima todo grande pintor, significava inevitavelmente um processo histórico. Quer dizer: para o pintor da verdade do EU, o adepto da lírica da angústia pessoal e da independência solitária, tipicamente moderna, a afirmação de sua condição irredutível de artista passava pela árdua conquista da universalidade por parte de um sul-americano. A integridade, a intransigência, até que caracterizavam a sua obra, começam pelo reconhecimento lúcido de sua origem singular, lateral, que exige um esforço ininterrupto de aculturação. E isto exatamente para garantir ao seu transe pictórico, avesso a todo e qualquer compromisso, o direito de cidadania no mundo da arte. O seu destino expressionista ganha assim um caráter agonístico ainda mais pronunciado — só através da atualização mais e mais acirrada do próprio real da pintura é possível alcançar a liberdade de pintar por si mesmo.
A busca pela verdade da pintura coincide naturalmente com a ânsia por uma verdade humana. [...]
Nem símbolos, muito menos caricaturas, nem mesmo personagens, os Ciclistas de Iberê Camargo talvez sejam finalmente criaturas, na acepção básica e elementar do termo. É legítimo até especular se não estaríamos frente a uma das últimas grandes formulações plásticas da noção de Figura. [...]"
BRITO, Ronaldo. Iberê Camargo. DBA Artes Gráficas: [São Paulo], 1994. p. 49-55.
"Essas faces (que se movem sobre as outras, do abismo) retêm muito da nossa humanidade, angústias, alienações civis, ignorâncias particulares e republicanas, sonhos amarrados em candelabros (também carretéis), o amor perdido, a história de um tempo primevo, mítico entre o profano e o divino. [...]
Criaturas, com todas as nossas dúvidas, sobressaltos, pedalando, vão sobre alguma irrisória, vã esperança. Mas pedalam. Não estão imunes da impaciência, nem de prováveis amores. Persistem a martelar o caos do mundo, com os implacáveis pés.
E toda a atenção deve ser posta nos olhos. Mesmo que tentemos acrescentar detalhes. Ou extraviá-los. Eles nos conciliam e veem da alma. De dentro de outra história. São olhos indagadores e duros. Longos. Rasgam o vazio, têm luz no amendoado centro, luz que arrasta e move as coisas. Hipnotizam de inocência e morte. [...] Sem rancor ou medo, prenunciam um tempo mais humano e justo. O equilíbrio e a energia por detrás do universo."
NEJAR, Carlos. A arte visceral de Iberê Camargo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 jan. 1991.
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