CO-2387
Jurandir, Dalcídio. [Carta, 19--], Rio de Janeiro, RJ [para]
Candido Portinari,
Brodowski, SP. [datilografado]
Portinari
Estes primeiros dias de Brodowski já devem ter lhe dado tranqüilidade, muitos silêncios e o primeiro contato com a terra e a sua gente. Depois de anos, bem sei o que é voltar à terra, recuperar certos sentimentos ou certas emoções que pensávamos perdidas. Para a sua pintura, essa humanidade daí tem um valor particular e, por isso mesmo, adquire uma feição universal do homem de todas as terras. Espero que veja muitas coisas, sobretudo seres humanos, e ver, sabe bem, é o grande mistério do pintor.
Tento reproduzir aqui um trecho de Ruskin, que li há pouco e me fez pensar em você, é o seguinte: A função integral do artista em seu mundo é de ser uma criatura que saiba ver e sentir, ser um instrumento tão sensível que nenhuma sombra, uma nuança, uma linha, uma expressão momentânea e fugitiva das coisas visíveis que o envolvem, nenhuma das emoções de que elas são capazes de transmitir não seja fixado ou escape da obra que a fixou. O lugar do artista não é nem no gabinete de estudo, na cadeira do magistrado, na barra do advogado nem na biblioteca. Estas coisas são para outros homens, para uma outra obra. O artista poderá refletir, raciocinar de vez em quando, conhecer fragmentos do saber, que poderá assimilar, sem disso fazer um esforço pesado. Mas disso deve ser o objeto de seus cuidados. A obra de sua vida é ver e sentir.
É claro que Ruskin foi um reformistas, mas foi um extraordinário crítico. Ver e sentir aí em Brodowski dará à sua arte um novo impulso.
Vi um número de “Humanité” em homenagem aos setenta anos de
Picasso. Vou ver se arranjo um exemplar para lhe mandar. Há uma frase de Élouard sobre o pintor e que me ficou na memória: O tempo não passa. O tempo começa sempre. É o que deve acontecer aí também com você, pois começa a ver, depois que viu o mundo, atravessou lutas, compreendendo que estamos na maior época da história, na época em que os filósofos, como queria Marx, já não interpretam o mundo, mas os transformam.
Aqui vai indo tudo mais ou menos. Chove para Ribeirão das Lages. Muitas lembranças a Mari e João. Aproveite Brodowski. Que os meninos e os camponeses lhe enriqueçam ainda mais a vista e o sentimento.
Um abraço do
Dalcídio