Letter

CO-1770 Firmeza, Mozart. [Carta, 1939], São Paulo, SP [para] Candido Portinari, Brodowski, SP. 11 p. [manuscrito] Meu caro Portinari: Soube de sua passagem rápida por esta capital, e lamentei não me ter sido possível ir abraçá-lo e cumprimentar sua senhora, bem como conhecer o primogênito. Só há poucos dias vim a saber, pelo seu irmão, que você era pai, de um galante e inteligente garoto. Nada mais expressivo, naquela página d’ “O Diário de S. Paulo”, sábado último, do que a foto de vocês, na cabina do trem rumo a Brodowski! A homenagem que os “Diários Associados” lhe prestaram foi sem dúvida “tout a fait”, presente o que os maiores modistas e chapeleiros, entre nós, possuíam de mais “chic”, ressaltada pela eloqüência sempre agradável do Menotti, o censo do belo inato ao Luiz Martins e a sensibilidade experiente e requintada da Tarsila. Procurei ler sua resposta, aos conceitos de arte ali emitidos e, sem júbilo, fui encontrá-la no canto final da página, sintetizada, magistralmente, nesta simples, profunda e brilhante advertência: “A crítica, essa, virá depois. E ela, sem dúvida, é que decidirá.” Não obstante terem-no identificado na proeminência em que você se soube colocar, graças ao estudo, talento e seu espírito audaz de conquistador, os oradores, a meu ver, discursaram teoricamente, sem o amor objetivo, o entusiasmo humano (e não de palavras), a compreensão de sua obra, Portinari; porque, para isso, é preciso, antes de tudo, haver perscrutado sua alma, seu temperamento, seu gênio, não pelo que ele já criou – tantos e tão formidáveis trabalhos - , mas sim em seu lastro de potência criadora, através do seu passado e seu presente, projetando-se em linha reta para o futuro. Em sua obra devemos distinguir o que é reflexo realmente de você, do seu imenso coração, extravasando-se, irreprimivelmente, e não dos simples e intencionais milagres dum “metier” cem por cento perfeito. Conheço seu espírito de artista, e sei o quanto é ele amadurecido, independente, seguro de si mesmo, dono de autocrítica tão justa, quiçá impiedosa se necessário, quanto sua crítica em relação aos outros. O que você disse ao repórter, recortei para meu arquivo, pois são palavras que trazem, em sua decisiva coragem, o selo da grandes verdades, e destinam-se à perpetuidade na história, Há anos que não nos vemos, coincidindo você encontrar-se ausente da cidade à última vez que estive no Rio, e procurei visitá-lo. Vi, todavia, que, do lado da Maria, essa criatura que a Felicidade lhe reservou, para com ela lhe presentear no momento oportuno, você vem, em bases sólidas de afetividade, construindo sua própria vida sentimental, sem esquecer, pelo contrário, a ele sempre voltando, como agora, o berço engastado aí em Brodowski, o velho tronco genealógico de frondosos galhos esparramados, dando a sombra boa e amiga de que avós e pais tanto precisam, após cumprido o dever de terem gerado filhos viçosos na tempera do caráter e da alma. Não menos pai do que você, sinto o seu verdadeiro mundo hoje inclinado também, antes de mais nada, sobre a cabecinha do filho, revivendo-se nele e nele procurando incutir, desde logo, a norma diretiva, o segredo da conquista pela felicidade. O trabalho, a família, o ideal – eis a base de onde se ergue tudo o mais, no desenvolvimento lógico de nossa finalidade humana e social. Não invejo sua sorte, porque neste particular marchamos “pari passer”. Num dos recantos mais saudáveis desta Capital (Jardim da Saúde – Bosque – Rua 13 nº 51), a meia hora de bonde do Centro, construí minha casa, onde temos de fato acesso, minha senhora, o Mozart II e eu, à pureza do ar, a leite puro de estábulo, sem pasteurização, e outras regalias só acessíveis no campo. Dela, saio à hora do trabalho quotidiano e a ela me recolho, imediatamente, após esse trabalho, sem transigências com festas e conversas fiadas, etc. Afastei-me do jornal como assalariado, e dele hoje só me sirvo quando algo realmente merece e pode ser dito por mim, o que dificilmente se verifica nestes instantes em que pululam os comentadores de política internacional, os estrategistas de café, os entendidos, enfim, da guerra... A guerra em si nos [ilegível] paralisa tudo o que não tiver interesse bélico e, distante de nós como estão as batalhas dos soldados, não nos poderá provocar reações sérias, de ordem psicológica, cultural ou política, se não indiretamente. Um novo mundo há de surgir dessas cinzas todas da destruição, purificado e purgado o ideal democrático, de modo a tornar-se uma fonte capaz de criar riquezas gerais e alegrias espontâneas, revigorada a sociedade, e melhor equilibrada, pela participação nela, de maneira mais ativa, das massas obreiras e do povo em sua expressão feminina, dando-se em cada país. O amálgama não só racial como intelectual e artístico. Outra função não teve o fascismo que a de por à prova o valor das Nações Unidas, e o amor recôndito do povo pela liberdade. Encontro-me, por assim dizer, face ao mundo, e do Brasil, em franca expectativa, e, como ser humano, vivo minha vida e [ilegível] meus, sou útil à sociedade – pelas funções que desempenho, e acompanho, como no seu caso, cheio de sadio contentamento, a escalada dos triunfos obtidos por aqueles a quem admiro e prezo sinceramente. Recomendações a Maria e receba o abraço sempre afetuoso do Mozart Firmeza Viaduto Boa Vista, 67 5º andar S Paulo tel: 3-4195 2