te.
- Mas aí já é uma outra visão do mer-
cado. É uma questão de nicho, é a cesta
básica. Quando você pensa numa cesta
básica, você leva todos aqueles produ-
tos para casa. Você não pode pensar em
feijão sem pensar em arroz. A caixa tem
um pouco isso, são produtos que com-
põem um cardápio que dá um pouco o
perfil de uma cozinha. O que é aquela
cozinha, o que é aquela culinária? Se não
for pra isso, se for pra dar o produto iso-
ladamente, você perde esse foco e essa
idéia de período histórico e essa idéia de
relação entre a leitura que a música faze
os signos daquela época. Essa coisa do
conjunto dos erros e das imperfeições,
que possibilitam você interpretar um
aleijão e que te dão uma ideia do que é
um aleijão perfeitamente configurado. Se
você não tem o corpo inteiro, você não
vai perceber que aquele corpo é todo torto
e todo aleijado. O aleijão é como você
quer mostrar. Então eu acho que a caixa
é pra isso e é por isso mesmo que ela é
uma caixa. É por isso que ela é mais cara,
por ser um produto exigente. É por isso
que ela se dirige a uma espécie de nicho
de mercado. É como uma enciclopédia:
por que é que você vai comprar um vo-
lume ou um fascículo só?
- Eu queria voltar um pouco à fase
londrina. Você conseguiu assimilar me-
lhor o exílio do que o Caetano. Pelo
que você estava falando, musicalmen-
te também?
- Não, musicalmente eu acho que foi
o contrário. Caetano ali, por exemplo,
com o cuidado e o rigor que ele tem -
sempre, em geral, muito maior do que o
meu, na observação das coisas e na in-
terpretação do real e da vida -, ele por
exemplo foi estudar melhor a língua e
trabalhar melhor as canções. Ele fez can-
ções mais rigorosas, se deteve mais na-
quilo que era o próprio produto. Quando
ele foi fazer - como fez "Transa", por
exemplo, ele fez um produto mais rigo-
roso. Eu ficava por ali, pelas ruas de
Londres e pelos lugares, perdido nas vi-
agens de ácido e tal. Caetano era uma
outra história, Caetano nunca tomou
nada. Eu era maconheiro e tomava áci-
do, então era uma outra história.
gens?
Não, gravações que pudessem re-
fletir registros disso não....
- Mas tem umas que parecem! (ri-
sos)
Fumo, sem dúvida, porque mesmo
depois daquilo tudo eu ainda fumei mui-
ta maconha... pra várias coisas.
- Você chegou a gravar nessas via-
- Antes dos Mutantes, você já tinha
tido experiência com ácido?
- Eu tive a primeira aqui, minha pri-
meira experiência com ácido foi com
Lennie Dale. Ele dizia, naquela época:
"Esse negócio de drogas, dizerem que faz
mal! Eu prefiro morrer 20 anos mais
novo do que poderia e ter todos os meus
prazeres! Era um hedonista militante,
mas eu acho que era isso.
-Essa caixa, especialmente na par-
te inédita, aponta muito para esta ques-
tão de drogas.
- Não tá orientada para a questão das
drogas. A droga era um ingrediente en-
tre tantos outros naquela cultura. Era um
fetiche de época, era isso. Todo mundo,
quem era “in” naquela época e estava
"por dentro das coisas ou queria estar,
tinha que fazer experiências
transformadoras do estado de consciên-
cia. Quer dizer, sair do estado comum
de consciência para os estados
transformários, através do que depois se
passou a se chamar de droga - porque eu
nunca achei que aquilo
fosse uma droga,
afinal maconha é erva. Essas coisas eram
cultura da época. "Are You
Experienced?" era o nome de um disco
de Jimi Hendrix, quer dizer, era um ter-
mo da época. “Você é experimentado?
Você é experiente? Você já fez suas ex-
periências? Você conhece o seu metier,
você conhece o seu mundo, você conhe-
ce os valores, você sabe o que é? Você já
foi à Bahia?" (risos) “Não? Então vá!"
Quer dizer, é um pouco disso. Era aqui-
lo. Como é que você ia dizer na sua tur-
ma como é que era o seu barato? O pes-
soal ficava do teu lado, falando do bara-
to etc, mas o que era o barato? Você ti-
nha que viver, era uma questão de
vivência. A droga era um dos ingredien-
tes vivenciais daquela cultura, era a fer-
ramenta para você saber do que se trata-
va. Os livros do Timothy Leary e as vá-
teorias incluíam até o açúcar ent
as drogas. Era "Sugar Blues”, com as
análises da macrobiótica fazendo todo o
contraponto e toda a negação das dro-
gas. Eu, por acaso, fazia as duas coisas:
tomava ácido lisérgico e fazia
macrobiótica! (rindo)
- Quando é que você começou a
achar que aquilo não fazia mais a sua
cabeça?
Quando não fazia mais! (rindo)
Quando aquilo fazia mais ruído no meu
corpo do que silêncio na minha mente!
(rindo) Quando a maconha e congêneres
começaram a mais ruído no corpo e me-
nos silêncio na mente, aí eu parei e pron-
to. Eu queria aquilo, tudo aquilo num
primeiro período talvez eu gostasse
mais... porque estava muito ligado na
coisa, na cultura do rock e da ação e da
realização de coisas. Talvez a droga no
início tenha servido um pouco para esti-
mulo, mais como estimulante de acele-
ração mental
. Mas já num segundo peri-
odo, logo depois, num período mais
hippie, a droga foi mais uma coisa de
meditação e tal. A maconha ficou mais
uma coisa pra provocar vazio, provocar
silêncio e distanciamento, desaceleração
e descompromisso com os afazeres. Era
uma nenta de lazer e i assim que
ela permaneceu depois, no final dos anos
70 e entrando pelo meio dos anos 80. Foi
quando começou a pintar taquicardia e
ficava complicado. Saca? Algum mal
estar. Aí não me interessa mais, eu não
quero... Pra quê? Pra mim essa viagem
auto-destrutiva nunca foi a minha. Ao
contrário, droga pra mim sempre teve que
ser sinônimo de bem estar. Quando dei-
xa de ser sinônimo de bem estar, deixa
de interessar.
- Fale algo sobre A Luta Contra A
Lata Ou A Falência do Café.
Ela chegou a ser lançada em com-
pacto, não foi Marcelo? Foi ne? Saiu em
compacto em São Paulo, era uma músi-
ca da época da briga séria e eu tomei a
briga com a sociedade e com o mundo
estudantil. Enfim, era o início das diver-
gências e do conflito do Tropicalismo
com a coisa toda. E eu me lembro que
estava em São Paulo, eu vivia em São
Paulo naquela época. Eu resolvi pegar
um aspecto residual do perfil civilizatório
de São Paulo, que tinha sido a presença
aristocrática: o aristocrata paulista, das
famílias aristocráticas de São Paulo
donos da terra e da produção do café. Aí
o café entrou como o saco de alinhagem,
que era o símbolo do produto. Era o in-
vólucro, era a caixa, era a lata. O café
ensacado era um grande produto de ex-
portação com a marca do Brasil, com o
mapa do Brasil e o Brasil escrito sobre o
saco do café. Então essa associação, essa
assimilação entre o resíduo do aristocra-
ta paulista e o velho saco de café, em
oposição à lata de café solúvel - uma
nova embalagem, um novo produto in-
dustrial, moderno e que portanto tinha
uma semelhança com o Tropicalismo e
com aquilo que nos representávamos pra
turma do rock. Éramos os novos bárba-
ros, querendo "invadir sua praia”. En-
tão era uma briga pra mostrar isso, com
as velhas gerações e os valores do pas-
sado contra os valores novos. A lata sim-
bolizava os novos valores e o saco de
alinhagem do café simbolizava o mundo
antigo.
- E quanto à Bruxa de Mentira?
- Isso foi feito pela rua, descendo a
rua Jardim Botânico com João Donato.
Estávamos caminhando à noite e ele fi-
cou cantarolando a música. Fomos in-
ventando a letra ali, na hora...
- ... sob o efeito de alguma coisa,
não?
- Não, já nessa época não. Nesse dia
por acaso a gente estava vindo da casa
de um arquiteto amigo nosso, na rua
Marqués de São Vicente ou em alguma
daquelas ruas transversais. Iamos lá pra
casa do João Donato, no Humaitá. É fai-
xa de um disco dele que nos produzimos,
com várias canções em parceria daquela
fornada. Que Besteira também é desta
mesma noite, nós fizemos três músicas
nesta noite.
- Existe a possibilidade de você vir
a regravar alguma coisa deste materi-
al?
fôlego para não lançar disco novo?
Você queria fazer o disco de Bob
Marley.
- Não, não é esse o papel da caixa. O
papel da caixa não é mercadológico nes-
te sentido. Dentro do ponto de vista do
artista, não é aquela coisa de "a caixa
substituir uma série de outros produtos
que eu tivesse a obrigação de fazer". Não
é, a caixa é nicho mesmo, é pra isso aí. É
recuperação documental, é pergaminho,
entendeu? É Museu do Tombo, sabe? São
os "papéis do descobrimento", essas coi-
sas, tem esse lado. É essa a função, não
substitui o que você tem que fazer agora
ou o seu compromisso com o futuro. Não
dá pra substituir, essas caixas são o pas-
sado.
- Nessa garimpagem do Marcelo
Fróes, eu suponho que do material ao
vivo ele tenha deixado de fora versões
de músicas que repetissem . Mas sobrou
algum material inédito do material que
ele pesquisou?
Olhaí, com a palavra o Marcelo
Diga aí, Marcelo
MF - Uma única música, cujo autor
nós não conseguimos identificar. ÉRato
Miúdo, que nos chegamos até a mixar
mas que, até o último minuto, não haví-
amos conseguido definir quem fosse o
autor.
GG - Eu sempre supus que fosse do
Jorge Mautner, depois supus que fosse
do Carlos Pinto - lá de Juazeiro -, mas
também não é. E eu não sei de quem é. O
departamento jurídico aqui da companhia
não quis correr o risco, né? Nós tería-
mos até corrido o risco, mas pra eles
poderia criar algum problema qualquer.
- De que época que é e de que disco
sobrou?
MF - Foi gravada com a banda do
Caetano, sobrou das sessões do compac-
to Sítio do Pica-Pau Amarelo em dezem-
bro de 1976. Temos Arnaldo Brandão no
baixo, Vinícius Cantuária na bateria e
Gil no violão Ovation.
GG- É a Outra Banda da Terra, com
a qual eu gravei aquele compacto que
também tem Mauro Senise especialmente
na flautin.
- Como eram as condições de estú-
dio na época?
Era aqui, já em 16 canais quando
eu saí. Os primeiros discos foram gra-
vados em 4 canais no estúdio da Aveni-
da Rio Branco. "Louvação" foi assim,
com arranjos do maestro Carlos
Monteiro de Souza, Dori Caymmi,
Francis Hime e Bruno Ferreira, filho de
Abel Ferreira. Todo aquele pessoal tra-
balhava assim comigo, gravando dois
canais e injetando aquilo como playback
enquanto botava mais dois por cima. E
assim sucessivamente, até no que desse!
(rindo) E o engraçado é que saía tudo
bem. Hoje em dia é impossível você ob-
ter sonoridade de violão, de voz e outras
fazendo isso. Aquelas gravações podem
ter um certo abafamento, mas por outro
lado tem uma certa fidelidade à qualida-
de acústica que hoje em dia você não
obtém mais. É engraçado, ganhamos
muitas coisas e perdemos muitas tam-
bém. Mas é sempre assim, é sempre as-
sim.
-Eu acho que sim, é possível que sim.
Ainda não me debrucei sobre este mate-
rial com esta intenção, né? Eu fiz uma
pequena triagem de material quando eu
fiz o "Quanta", não é isso Marcelo? Foi
sobre o meu material de quando você
estava levantando a Warner, porque você
estava trabalhando nas duas gravadoras.
A música Sala de Som é material daqui,
é sobra do disco "Refavela" e está na
caixa junto com É e Músico Simples. A
Pílula de Alho é um refugo das grava-
ções de "Um Banda Um".
- Ouvindo agora a versão original
de Sala de Som, vê-se que a música era
muito mais complexa.
Em "Quanta" eu a reduzi, eu a bos-
sa-novizei rigorosamente. Eu fiz uma
versão bossa-novística mesmo pra fazer.
As acentuações rítmicas e as interven-
ções vocais da versão original estão li-
gadas mesmo ao aventureirismo
experimentalista daquela época.
- Até que ponto essa caixa vai te dar
INTERNATIONAL MAGAZINE - N° 55 - ENCARTE
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