JOÃO DONATO
A
RAPSODIA DONATIANA TEM
raízes na Selva Amazô-
nica. Em Rio Branco, no
Acre, veio ao mundo em
17 de agosto de 1934, perto do meio-
dia. Seu pai, João Donato, era major da
Aeronáutica e foi o primeiro piloto de
aviação acreano. Chegou a sofrer nove
acidentes aéreos em sua carreira mili-
tar, mas teve morte natural em casa, ao
lado da família
camente com o nome Irmãos Oliveira)
freqüentaram o Sinatra-Farney Fan
Clube, na Tijuca, Zona Norte do Rio.
Por quase dois anos, o clube - das pri-
meiras escolas da geração bossa-nova,
fundado por Johny Alf - foi um dos
poucos redutos cariocas consagrados
às audições de
jazz.
de
No rol dos associados ilustres, es-
tavam o futuro parceiro de Donato, o
clarinetista Paulo Moura, e as canto-
Sem nunca ter freqüentado a escola,
ras Nora Ney, Dolores Duran, Doris
Donato desde 7 anos compunha. Nos Monteiro e Silvia Telles. E os novos
anos 40, em Rio Branco, a irmá mais compositores: Luis Bonfá, Billy Blanco
velha, Eneyda, acordavao o menino ao e o imortal Tom Jobim. "O pessoal se
som dos estudos do método de piano reunia para ouvir Frank Sinatra
el
Dick
Hannon. Rapazote, passou a praticar Farney, porque os discos ainda eram
o Hannon sem encarar a regularidade escassos no Brasil”, recorda Eneyda.
e a disciplina cobrados pelo virtuoso Nos laureados anos 50, novidades
método. Em estações esparsas da vida,
de jazz norte-americano
a irmã vasculha na lembrança, Dona- aportavam no Brasil
com meses
to estudou com professores no Rio de atraso, na cadência engatinhante da
Janeiro: "Absolutamente dispensável
. infância da bossa. O jovem Donato era
Ele era
era indisciplinado. Dezenas de ca-
inquieto. Para se atualizar, não per-
dernos mostram um autodidata no sen- dia os musicais da Metro-Goldwyn-
ano, no Mayer no cinema: sessões direto das
2 às 4 e das 4 às 6. Chegava em casa à
tardinha e ia ao piano reproduzir as
trilhas sonoras dos filmes, para não
esquecê-las. "Um recorde!"
, orgulha-
se Eneyda. À meia-noite, o adolescen-
te lançava os temas hollywoodianos,
furando as gravadoras, no programa
Boate Meia-Noite do Hotel Copaca
bana Palace. “João fazia isso tudo aos
15 anos de idade, escondido de pa-
pai", dedura,
50 anos depois, a irmã.
Ocrítico musical Tárik de Souza quali
fica João Donato como peça-mestra na
engrenagem da MPB. A regionalida
tido exato-na sanfona ou no
trombone e noutros instrumentos. O
que mais se vê nas suas anotações são
estudos de Debussy e Ravel”, revela.
Certa vez, por volta de 1946, a famí
lia passava o dia na casa do brigadeiro
carioca Thomas Gedwürd - "Papai
disse que João tocava qualquer coisa",
deiro quis saber se o filhote do aviador
também era capaz de "pilotar um vio-
lino". O menino respondeu “sim”
entanto,
, só o conhecia “por fotografia"
Rogou cinco minutos a sós com o ins-
trumento; na volta, anunciou, malan-
dro: "Pode escolher a música". "E tocou
maravilhosamente o violino para o bri-
gadeiro. João toca qualquer coisa - só
precisa saber onde fica dó-ré-mi-fa-sol-
la-si", descreve a testemunha ocular,
Lysias Enio é parceiro-irmão
poeta de Donato. A consanguinidade
artística verte fácil nas abundantes
no
O
composições da dupla. São deles “Ama-
zonas", "Até Quem Sabe", "Café com
Pão". Donato entra com o som, Lysias
traz a poesia. Declara a irmandade,
versejando: "Volúvel, comparsa indis-
solúvel na harmonia do DNA e na par
ceria de vida. Somos águas do mesmo
rio. Meu irmão, nas ondas da música; de, pontua, é
eu no balanço da poesia. A musicali abrangera.composto de partida para se
dade está em tudo".
Compor com Donato, conta Lysias
com a franqueza de família, é bom. "Mas
às vezes é chato. A afinidade é mais es
tética do que genética", diz. A memória
musical mais antiga com o irmão, arma-
zenada ad eternum, é a
é a de uma sanfona
de brinquedo: “Uma, não, duas! Uma
minha
Outta
dele. Na minha, meti a te-
soura pra ver o que tinha dentro. Onde
eu ouvi ruído, ele ouviu som".
do pelo compositor. No caso, a música
nordestina dominante na mídia do fi-
nal dos anos 40 e início dos 50: "A bor
do de uma sanfona, Donato chegou a se
apresentar no programa de Alfredo Ri-
cardo do Nascimento, o Zé do Norte,
autor de 'Mulher Rendeira' e das com
posições
do filme O Cangaceiro", situa.
Rápido, se engajou nas transições esté-
ticas que desaguariam na bossa nova.
Em 1951, aos 17 anos, participou do his-
tórico disco precursor de Luiz Bonfá.
Toca acordeom e estréia como compo-
Até o começo dos anos 50, João Do-
nato e Eneyda (que debutaram artisti-
84 ROLLING STONE BRASIL, JUNHO 2008
QUEM É QUEM
1. O jovem Donato,
nos anos 60, em imagem
de divulgação utilizada
nos Estados Unidos.
2. Com Gal Costa, na
década de 70, com
quem compôs e gravou
o álbum Cantar (1974).
3. Com o amigo João
Gilberto, em 1957, no
Rio de Janeiro
sitor em parceria com João Gilberto,
com "Minha Saudade". Pela primeira
vez, a avançada percepção harmônica
fazia-se perceber no acetato.
nista tingiu-se da influência caribenha,
No outro lado do Atlântico, o pia-
atuando com os músicos Mongo San
tamaria e Tito Puente. Grava com Bud
Shank, saxofonista, e inicia-se na mes-
tiçagem MPB & jazz em três discos, a
partir de 1953. Nos Estados Unidos,
deixa a trinca formidável de álbuns:
“NUNCA TENHO IDÉIA DA
IMPORTÂNCIA DAS COISAS.
NADA É PRETENSIOSO OU
AMBICIOSO. FAÇO FAZENDO.
TUDO É TÃO SIMPLES”
Piano of Joao Donato - The New Sound
of Brazil, com o alemão Claus Ogerman
(arranjador do álbum Francis Albert
Sinatra & Antonio Carlos Jobim), em
1965; Donato/Deodato, em 1968; e o
antecipador A Bad Donato - em que
inaugura o instrumental eletrônico
que começava a ser usado em 1970.
De volta ao Brasil, em 73, lança Quem
É Quem, marco de sua carreira, no qual
as músicas recebem letras. Dois anos
depois, sai Lugar Comum, marcado
pela parceria com Gilberto Gil, que
assina a maioria das faixas. E a fase da
expansão do repertório e das parcerias
-de Gile Caetano Veloso a Martinho
da Vila e o irmão Lysias.
Caetano repartiu com o amigo Do-
nato "A Rā", "Surpresa" e "O Fundo". O
da música. Nele, a precisão matemática
tem como beatifico: "Donato é um santo
é como se fosse um aroma. E a forma
concisa da canção se mostra capaz de
enfrentar a grande arte geral I da com-
posição. Tocando piano, vai fundo no
terror da existência - densidade e am-
plitude na harmonia -e sobe à tona da
delicadeza de um brinquedo - soltura
nas melodias e ritmos. Sempre foi velho
sábio e menino esperto. Sempre será
"
Notória pela voz e laços de familia
(irmã de Chico Buarque, casada com
João Gilberto, mãe de Bebel Gilberto),
Heloisa Maria Buarque de Hollanda, a
Miúcha - que compartilhou da músi-
ca e amizade de Vinicius de Moraes e
Tom Jobim, também se
1 se derrete em elo-
gios: "Donato vai direto ao ponto. Sua
leveza e humor são enormes, na música
ou na personalidade. Sou muito fa".
Gilberto Gil, por sua vez, brinca com
a poesia do nome: "João é do natural, é
dom natural", simplifica.
V
OLTANDO À MAGICAL MIS-
tery chair, preterindo a sa-
grada prática de Debussy,
Donato passou a madruga
da inteira montando a poltrona." "Seu
Trono”, caçou a gaúcha Ivone Belém, 42,
esposa, que em 2005 trocou o Planalto
Central para viver com ele na Urca. Ela
administra sua carreira dentro e fora
dos palcos: "O João tem mania de ir aos
supermercados dos outros países. Com-
pra biscoitos, pasta de dente, creme de