MÚSICA VISUAL: Recriações plásticas têm várias leituras, sem fazer tradução literal das canções
Leituras vão do conceitual ao sensorial
'Super-homem' vira mulher musculosa e Zerbini cria instalação para 'Domingo no parque'
Reprodução
R
epresentar pictorica-
mente as canções de
um mestre da MPB
não é tarefa simples. A
maioria busca o caminho do
diálogo conceitual entre as le
tras das músicas (e não tanto
as suas linhas musicais) e o
seu universo plástico. É o caso
do fotógrafo Daniel Klajmic, a
quem coube representar "Su-
per-homem": ele encontrou
sua síntese no corpo musculo-
so e pouco feminino de uma
professora de ginástica.
- O natural seria um ho-
mem com elementos femini-
nos, um travesti, na linha de
muitos trabalhos que já fiz, ou
uma figura andrógina. Mas
preferi inverter a expectativa
nessa leitura autoral.
Tão autoral quanto Daniel,
mas menos literal, a artista
plástica Adriana Varejão teve
dificuldades para traduzir a
canção "Andar com fé".
Na música de Gil, a fé po-
de ser qualquer coisa. Não era
o caso de dar um sentido pu-
ramente religioso. Precisava
representar o estado da fé.
Adriana, então, usou o jar-
dim de sua casa como ambien-
te para obter um efeito de le
vitação: pendurando-se no ca-
ramanchão, deixou-se fotogra-
far, das pernas para baixo, de
costas, descalça, com os pés
em movimento.
Sem cerimônia, o pintor e
escultor Luís Zerbini confessa
que "foi moleza" encontrar a
solução da sua charada: inter-
pretar a épica "Domingo no
parque", uma das canções fun-
dadoras da Tropicalia.
- Quando ouvi a música
pensei logo numa caixa de iso-
por, nas espátulas de sorvete
com os nomes de João, José e
Juliana, o vermelho do moran-
go/sangue e o buraco no iso-
por - diz o artista, esclare-
cendo que o buraco não é o fe-
rimento de punhal com que
José mata João:
-o buraco já existia, sem-
pre existiu: é o buraco da men-
te tomada pelo ciúme.
Uma coincidência ajudou a
cenógrafa e cineasta Daniela
Thomas: quando seu nome foi
sorteado para trabalhar "Tem-
po rei", deu-se conta de que o
objeto que traduzia a mensa-
gem do compositor já estava
em sua casa: um prato-lem-
brança do Pão de Açúcar, com
a foto do turista gravada.
- Coleciono há anos esses
pratos, já são 38. E o que usei
tem a imagem do centro quase
apagada pela ação inexorável
"SÍTIO DO PICA-PAU amarelo" segundo o artista Manuel da Costa
do tempo. A foto é de uma ami-
ga minha, artista plástica, que
morreu muito cedo, e que amo
muito. O prato está colado
num quadro dela que também
está se apagando.
A videomaker Katia Lund,
que trabalha com temas co-
munitários, também teve sor-
te: ficou com "Refavela". Mas,
no seu caso, a questão do tem-
po/movimento - que ajudou
Daniela - foi um entrave:
-O orçamento não possibi-
litava um trabalho com ima-
gens em movimento, então
reuni um grupo de jovens ar-
tistas de favela. Em certo as-
pecto é uma música datada,
porque fala da evolução do ne
gro pobre no sentido de ir pa-
ra o asfalto. Hoje o processo é
inverso: é o homem do asfalto
que olha e pensa a favela com
outros olhos, e vai a ela.
Com isto em mente, ela
construiu um barraco com
uma janela que o público é
convidado a abrir e, quando o
faz, é como se passasse de fo-
ra para dentro do casebre.
- Acabei, sem sentir, fazen-
do uma obra em dois tempos,
com movimento, com uma his-
tória - comemora.
O fotógrafo e artista plásti-
co gaúcho Manuel da Costa é
dos poucos que fugiram ao ca-
minho da interpretação, dei-
xando a mente correr solta pa-
ra chegar, em duas semanas, à
composição multicolorida,
com objetos dispostos sobre o
solo, para a não menos colori-
da "Sítio do Pica-pau amarelo".
Ao se observar a composição
de Manuel, pode-se extrair de-
la a musicalidade anárquica
do universo que Gil captou tão
bem na obra e no arranjo.
Luiz Pizarro, por sua vez,
viu na letra de "Barato total" a
oportunidade de transporo
"barato" na acepção dos anos
70 - da obsessão pela vida e
pelo amor livre - para uma
obsessão do mundo moderno:
o culto ao corpo e a forma fi-
sica. Assim nasceu a estrutura
de três placas de vidro susten-
tadas por pequenos halteres
num plano e por garrafinhas
de vitamina no outro.
- Procurei permanecer fiel
ao meu contexto de criação -
diz Pizarro, que tem trabalha-
do sobre este tema.
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