- JARDS MACALÉ
mãe"), Macao relaxa da labuta no Rio de Janeiro (ele
chama seu pequeno apartamento no Jardim Botâ-
nico de "a cápsula"). Uma conferida discreta na sua
biblioteca revela: dicionários, songbooks e enciclo-
pédias de música e literatura política saltam à vista.
Há também centenas de velhos vinis (muito soul e
blues e, durante a entrevista, ele rolou Hendrix,
Gal de 69, Elvis, Caymmi), histórias em quadrinhos,
uma profusão de objetos e memorabilia. E há uma
coleção de anjos - que, claro, são vigiados por um
Exu: Zé Pelintra está de olho.
ta de na música?
Como você começou na
A minha formação foi assim: nas década de 1950 e 1960,
a rádio Nacional estava no auge. Eu era amigo do filho
do Severino Arai
Araújo, o Chiquinho. Ele tocava bateria, eu
violão, e fizemos um grupo chamado Dois no Balanço,
que foi aumentando até chegar a Sete no Balanço. Isso
deve ter sido em 1960, 62. Assim, eu fui ser copista da
Orquestra Tabajara de Severino Araújo. Fui aprender a
ler e escrever músicas copiando partituras. Eu ia lá na
rua Mairink Veiga, na rádio Nacional, e distribuía
partituras que eu tinha copiado nas estantes dos músi-
cos. Ai, eu sentava na plateia para ouvir, na minha fanta-
sia, o arranjo que eu tinha escrito, e que na realidade eu
tinha copiado [risos). Foi assim que aprendi uma noção
de harmonia, de arranjo de metais, de percussão, tudo.
E como você entrou no espetáculo Opinião, em
1965, com a Maria Bethânia?
dou
o Roberto Nascimento, que era meu parceiro, foi to-
car com a Elizeth Cardoso e me pediu para substituí-
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lo no Opinião. A Bethânia chegou ao mesmo tempo
da Bahia para substituir a Nara Leão. O pai dela man-
o Caetano para tomar conta, vieram os dois. E
eu convenci minha mãe a deixar a Bethânia ficar hos-
pedada lá em casa. O Caetano já me conhecia, tinha
passado pelo Rio em 1958 para fazer a sonorização de
um filme do Alvinho Guimarães, o cara que depois
faria a capa do Transa, e tinha falado de mim para a
Bethânia. Então, em 65 a Bethânia ficou lá em casa e
o Caetano ficou nas proximidades.
Você se tornou conhecido por causa de "Gotham
City", apresentada no Festival Internacional
da Canção de 1969. Como escolheu essa metá-
fora do Batman ?
FIC o que sobressaiu foi "Gotham City". Entramos quase
anônimos no festival e saímos famosíssimos, eu e o Ca-
pinam em todas as primeiras páginas de jornal. Viramos
heróis - aliás, anti-heróis no dia seguinte. Primeiro a
gente queria soltar um morcego de verdade, mas, depois
que proibiram o Hermeto Paschoal de tocar com porcos,
a gente desistiu do morcego real.
Depois, você viajou para Londres a convite do
Caetano para gravar o Transa.
Eu estava no Carnaval de 1970 na Bahia, na praça Castro
Alves, e aí a Bethânia sai correndo da multidão dizendo dois nus, com uma criança que parecia um anjo no colo.
"Macao, Macao, Caetano quer falar com você. Ele vai te- Sorrimos, eles sorriram, e quando estávamos passando a
lefonar daqui a uma hora". Era o tempo que eu tinha |
mulher abriu a mão pra mim e ofereceu, tinha um mon-
atravessar aquele mar
de gente e chegar na casa dos pais
te de ácido. O apresentador do festival, no palco, dizia
do Caetano e atender. "Eu vou gravar um outro disco e ao microfone: "Atenção, senhores, não tomem o
sem você vai ficar dificil. Eu queria lhe convidar, fale com rosa, o ácido rosa está estragado, tomem só
o laranja
o Guilherme Araújo", que era o agente dele. O Guilher-
o azul", aos berros [risos]. Os brasileiros estavam em
E você viu que essa imagem tinha uma força. me falou: "Meu querido, você precisa vir pra cá - tudo algumas barracas em cima de um morro - só nós mon-
Não, a coisa só ficou forte mesmo com o arranjo do Ro- pago, você vai ter carro, morar com o Caetano, vou man- tamos nossas barracas em cima do morro, os ingleses
gério Duprat. A abertura com toda a orquestra tocando o dar passagens para você e Giselda (esposa de Macalé), ficaram lá embaixo [risos). Eu estava numa barraca pra
arranjo original do Nelson Riddle na introdução. E ai no você precisa pegar esse avião" o Caetano queria sair da- dez 2 pessoas, emprestada pelo [produtor] Cláudio Pra-
ensaio nós vimos que nesse ponto e
o estava
a escrito nas par quele clima de bode, de ter sido obrigado a sair do Brasil. do. Nessa
hora, descansando da viagem de ácido, está-
tituras de todos os músicos TOQUE O QUE QUISER... O disco anterior gravado em Londres é lindo, mas tem vamos só eu e uma
uma amiga portuguesa, Lodo, na barraca,
Porra, cada um tocava qualquer coisa, e ficava uma ca-
O
cofonia total. O Capinam trabalhava com propaganda, cima, e eu fui escalado. E acabou queria dar a volta por quando comecei a ouvir uns gritos de "Police, police" Sai
Não fui eu, foi o [poeta José Carlos] Capinam. Ele fez
um poema usando a linguagem de quadrinhos, que era
uma coisa moderna. O Batman é um fora da lei; na ver-
dade ele faz a lei, na tentativa de ser um... defensor da
sociedade gothancitense. Ai o Capinam usou isso com
ironia. "Cuidado, há um morcego na porta principal."
É uma loucura, porque ele é um defensor, entanto
cuidado, porque ele é um horror também.
acido
otus
e imprimiu a letra num papel que você dobrava e virava
um morceguinho que voava. Espalhamos morceguinhos
pelo Maracanãzinho todo. Estava tudo dando certo, mas
com a cacofonia o tempo virou. Entramos [a banda] Os
Brasões e eu com aquela bata, e o Maracanãzinho estava
completamente louco, o público fazendo assim (polegar
pra baixo) e vaiando. De toda aquela parafernália do
uma experiência
maravilhosa, a gente se divertiu pra caralho.
Como foi a história de Glastonbury?
No festival de Glastonbury de 1971 estava toda uma pa-
tota, Gil e sua mulher, Sandra, eu e minha mulher, Gisel-
da, Caetano e sua mulher, Dedé, os músicos do Transa,
[os cineastas ] Neville D'Almeida, Julio Bressane, Roge-
rio Sganzerla, Glauber Rocha e Helena Ignez e a filha
sem entender muito bem, e vio Gil em posição de
no fundo da barraca pequena dele, com um monte de
brasileiro lá dentro, uns dez, disfarçando [risos]. E só a
Paloma Rocha, filha do Glauber, que então tinha uns 10
anos, estava lá, enfrentando a polícia em inglês. A polícia
levou a barraca embora e rente ficou ao relento. Depois
eu soube que na verdade e a uma barraca militar, que o
Prado tinha roubado no festival da Ilha de Wight [risos).
80. ROLLING STONE BRASIL, MAIO, 2010
Momentos de um Anarquista
Macalé em 1969 no Festival Internacional da
Canção interpretando "Gotham City" ao lado
do grupo os Brasões (1). Com a mentora
Maria Bethânia na época do espetáculo
Opinião, na metade da década de 1960 (2)
deles, Paloma. O Bressane era grandão e ficava com os
pés para fora da barraca. Era uma grande fazenda, como
Woodstock, num lugar com uma conexão com as pedras
de Stonehenge. O Gil até tocou, eu toquei também. En-
tão, estavam distribuindo ácidos de várias qualidades,
nessa época a gente tomava quase um por dia. Tinha
gente que era careta, mas que ficava no meio dos ma-
lucos, numa boa. O Caetano, por exemplo. E em Glas-
tonbury eu e a Giselda saímos do mato onde estávamos
transando e demos de cara com um casal inglés lindo,
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