CLIPPING
SERVICE
Consultoria
& Recortes
ENTREVISTA
André Midani
‘Música negra merece mais atenção '
O ex-todo-poderoso presidente da PolyGram e da Warner escreve biografia e elogia o som que vem das favelas
O que primeiro chama a atenção no apartamento de
André Midani na Vieira Souto é a vista, claro. Uma
olhada mais atenta e se vê sobre a mesa uma imensa
luva de boxe, amassada pelo uso e pelo tempo. Ela
traz uma assinatura: Cassius Clay. Foi comprada num
Mauro Ventura
O GLOBO: Nos anos 70, ose
nhor disse a célebre frase: "O
futuro da música brasileira está
no rock" O que destacaria na
música de hoje?
ANDRE MIDANI: O negro con-
temporaneo merece mais
atenção. Há coisas maravilho
sas, como Rappa, Afroreggae,
MV Bille Racionais. A música
sempre foi o jingle da vida e
hoje quem faz o ſingle da vida
são eles. Cerca de 80% da cha
mada música popular brasile
ra velo da classe média univer-
sitária, de Tome Gonzaguinha
a Chico e Aldir Blanc. Hoje a
universidade não tem nada a
dizer para a gente. Artistas co-
mo Nara Ledo, Geraldo Vandré
e Carlinhos Lyra eram da clas-
se média, mas diziam que as
classes menos favorecidas ti-
nham que ter seu próprio dis-
curso. Como não tinham, tor-
naram-se porta-vozes da des-
graça dos outros. Atualmente,
o discurso está nas favelas. A
inteligência brasileira não re-
conhece nesses cantores va-
lor estético, poético, melódico
e harmonico, mas é fantástico
ver que eles estão falando na
linguagem deles, na necessi-
dade deles, na raiva deles.
CLIENTE: GILBERTO GIL
VEÍCULO: O GLOBO - RJ
SEÇÃO:
SEGUNDO
17.03.2002
DATA:
• Os jovens de classe média
podem ser seduzidos pelas
vozes que têm da favela?
MIDANI: Claro. Qualquer ga
rotinho que queira encontrar
um instrumento para expres
sar sua rebeldia é um fregues
em potencial dessa turma O
problema é que o establish
ment fica incomodado quando
vê esse discurso. o que o Ro
berto Carlos dizia: "Sua
estupi-
dez não lhe deixa ver..
• Além do som negro brasile
ro, o que mais o entusiasma?
MIDANI: Acabei de receber
um montão de colsas da Fran-
ça. O que tem de gravação de
africanos é impressionante,
em quantidade e em qualida-
de. A música negra surge com
um frescor maravilhoso. O
crescimento da world music é
irreversível. A música cubana,
a dominicana, a brasileira e a
porto-riquenha, num grau um
pouco menor, lazem uma co
missão de frente musical real-
mente respeitável
• O senhor é um dos melhores
amigos de Washington Oliver
to e no dia seguinte ao segles
tro mudou-se para a casa do
publicitario. Como foi a expe-
riência?
MIDANI: Fiquei quase dois
meses lá. Foi doloroso, mas
. , é
uma felicidade poder ajudar
um amigo.
PÁG: 02
leilão há três anos e é um símbolo inegável de poder.
Poder que Midani sempre teve.
– Tinha - corrige. - Graças a Deus não tenho mais.
Perto de completar 70 anos, em setembro, o homem
que apostou na Bossa Nova e na Tropicália, lançou T-
tas, Ultraje e Kid Abelha, revolucionou a indústria fo-
nográfica brasileira, acaba de se aposentar, mas está
longe de sair de cena. Midani está escrevendo sua bio-
grafia, tem se reunido com Marcelo Yuka e MV Bille vai
trabalhar com rádios comunitárias em favelas do Rio.
Leonardo Aversa
no
leiro e de um especial para a
TV alema sobre as rádios co
munitárias. E
E sonho com um
projeto que leve educação mu-
sical a crianças carentes.
ANDRE MIDANI. perto de completar 70 anos: encontros com Marcelo Yuka e MV Bill, visitas a favelas e trabalho com rádios comunitárias
tão, elas deveriam se conectar sabia falar português e o di- tinham tempo de cuidar dos se havia algo novo nas ruas
e trocar material. Pode se ins nheiro só dava para três sema- artistas importantes, que es Ele disse: "Claro. Tem uns ca .O senhor não costuma dar
talar computadores, por um nas. Fiquei em pânico. Na
muitas entrevistas. Por que?
. ,
MP 3 no meio e mandar músl- França, tinha sido confeiteiro, do, fazendo parcerias. Passei a minho de amanha." Contrata. MIDANI: Não acho que minha
ca para todas as rádios ao mas vi logo que o Rio dos anos ouvir os artistas e dar a eles mos Titas, Ultraje a Rigor e Iral, historia tenha nada de notável.
mesmo tempo. Tenho conver 50 não tinha muito espaço pa- uma consistencia que até en entre outros. No Rio, contactel Em nenhum momento eu tive
sado com amigos estrangeira a profissão. Como havia tra-
ra a profissão. Como havia tra- tão não tinham. Tim Maia me nosso diretor artistico, o Limi- um sentido histórico do que la
nha, que trouxe Kid Abelha, zla. Era o Chico e o Ruy Guerra
ção de um disco negro Bras achei que pudesse ganhar av Erasmo Carlos. Fomos
atrás Lulu Santos... Nossa entrada que me procuravam
brasi
da no mercado de discos. No de Chico Buarque, Jorge Ben, rock foi uma casualidade. "Estamos querendo fazer um
meu segundo dia no Brasil, Luiz Melodia, Jards Macale, Ou melhor, uma necessidade. livro, um disco e uma peça
consulte as páginas amarelas Raul Seixas. Éramos muito
chamada "Calabar' e precisa
e resolvi ligar para a a gravado agressivos. Publicamos um . E como conheceu o pessoal mos da sua ajuda para ir na
ra Odeon. A telefonista, apavo anuncio de duas páginas com da Bossa Nova?
Holanda ver os arquivos sobre
rada com meu inglés, transle o elenco de artistas
da grava MIDANI: Fui apresentado pelo ele. Eu dizia: "Tá legal, conhe-
• O senhor aposentou se da Triu a ligação para a secretária dora. Acompanhava a foto a fotógrafo Chico Pereira, que co o embaixador, vou telefonar
me Warner, onde era presiden- do presidente. A moça imagi- seguinte frase: "Só nos falta disse: "Meus filhos estão no para ele." Mas fazia essas coi
te da Wamer Internacional e nou que eu fosse da matriz eu Roberto Carlos, mas também colégio e conhecem uma tur. sas sem a dimensão histórica
cuidava de 14 paſses. Sente ropéia da gravadora, em visita ninguém é perfeito."
ma que faz uma música bem
falta das limousines, dos ho ao pais para uma inspeção na
diferente do que está se gra. Que mudanças o senhor ve
téis caros, do glamour? filial, Marcou um encontro . E por que saiu da PolyGram Vando. Seria bom você conhe
?
MIDANI: Não, porque ao mes com o presidente. Pensel: para a Warner?
cê-los. Mesmo que não goste MIDANI: Um desenho possi-
MIDANI: Sal para implantar a
vel de futuro é que não haverá
Warner no Brasil, em 1976. Co otimas. " E assim, numa testi mais companhias de disco co
meçamos com 3% do mercado nha domingo de tarde, conhe mo a gente conhece hoje, com
-o repertorio inicial era todo ci Nara Leão, Roberto Menes vendedores, departamento de
americano. Aos poucos, lo- cal, Oscar Castro Neves, Ro crédito, cobrança, dinheiro in
mos trazendo Elis, Tom, Bel- naldo Boscoli e Carlinhos Ly vestido em estoque. Elas vão
chior, Hermeto, Paulinho da ra. Enturmei-me com eles. Ete se libertar da mediocridade
Viola, Ney, Baby e Pepeu... ve um dia que o Caymmi tele- do sistema. A maior parte da
fonou e disse: "Olha, tem um música vai transitar pela inter-
artista que eu quero mostrar." net. Hoje, já devem existir cin-
Era João Gilberto,
co milhões de sites de musi-
cos que poem sua canções na
rede. Quem vai ter tempo de
buscar a música de que gosta
nesses milhões de sites? A gra-
vadora vai fazer isso, ouvir e
filtrar. Se interessar, ela faz um
contrato com o site, adquire
os direitos e põe sua máquina
promocional em funcionamen-
to. Mas nunca vi futurologia
funcionar. Então, não há por-
que achar que a minha é me-
Thor do que a dos outros.
cupar com perdas e assegurar
que as empresas deem lucro.
Não tenho mais
nais
que me preo- França, eu levaria três anos
para marcar uma entrevista
com o presidente de uma gra
vadora. Durante a conversa,
desfizemos o equivoco e falei:
"Sou fugido e preciso de em
prego." Acabaram me contra
tando para lançar a Capitol no
pais. No meu quarto dia de
Brasil estava empregado. Foi
uma sorte enorme.
• O que o senhor tem feito?
MIDANI: O Yuka chegou para
mim e disse: "Cara, você é a
Por que o senhor resolveu
pessoa certa para levar adian-
apostar no rock brasileiro?
te uma idéia. Segundo ele,
MIDANI: Foi por causa da cri-
existem cerca de mil rádios
se mundial do começo dos
comunitárias
no Brasil, mas
• Quando o senhor assumiu a anos 80. Eu estava cheio de
que vivem em condições pre
PolyGram?
contratos caros e o mercado
cárias. Vejo nelas um projeto
MIDANI: Em 1968. A gravado vivia uma recessão. Tecnica-
político de inclusão social. É . Como o senhor veio parar ra tinha no elenco mais de 150 mente fui à falência. Se a mul.
um trabalho que será feito jun. no Brasil?
.
cantores. Passei quase dois tinacional não tivesse posto di-
to com o Viva Rio. Tenho visi- MIDANI: Nasci na Siria, fui pa- meses ouvindo discos e reduzinheiro, tinha fechado as por-
tado favelas para conhecer a ra a França
com três anos. Em o cast para 45. Os que ficaram tas. A solução foi procurar ar-
realidade dessas rádios. São 1955, vim para o Brasil porque - gente como Elis, Gil, Gal e tistas novos, que custassem
estações que não têm acesso a não queria servir na Guerra da Caetano - passaram a ter li menos. Liguel para o Peninha
músicas porque recebem pou Argélia. Por causa disso, perdinha direta com o presidente. (Schmidt), um grande desco
cos discos das gravadoras.
En meu passaporte
frances. Não Até então, os executivos não bridor de talentos, e perguntei
va suando aos montes, pálida,
parecia que la desmaiar no
palco. Teve que sair e tomar
água. Mais tarde, perguntelo
que tinha acontecido e Elis
disse: "Quando entrei no palco
e me senti pisando no mesmo
lugar que Ella tinha pisado, fl-
quel transtornada. Lembrel
que sou filha de lavadeira,
queria morrer. André, você me
promete que nunca vai lançar
este show em disco?" Alguns
anos depois ela morre. Duran
te um mês, escutei o concerto
e outro show que ela tinha lei-
to de tarde. Editel e a monta-
gem ficou fantástica. Falel:
"Elis, você vai me perdoar,
mas eu vou lancar, esse vai ser
teu último testemunho." No
dia de entrar em estúdio, subo
as escadas e ouço lá em cima
Ells cantar. Perguntei-me: "O
que ela está fazendo al?" Até
hoje fico arrepiado de lem-
brar. O que eu estava ouvindo
era a fita que o pessoal estava
tocando para ajustar a mesa
de gravação. Mas era como se
ela estivesse all comigo, me
ajudando a montar. Eu chora-
va sem o menor embaraço
Quando acabei, ela e eu está
vamos de acordo: teria sido la
mentável não lançar o disco.
So as três músicas que ela can
ta com Hermeto Pascoal são
até hoje um dos grandes mo-
mentos da música brasileira
• Por que a decisão de lançar o
disco de Elis em Montreux,
mesmo contra a vontade dela?
MIDANI: Em 1979, os america
nos em Montreux ja falavam
de Elis como a nova Ella Fitz-
gerald. Na hora do show, eu
estava na coxia, atrás do pal-
co, e já saboreava antecipada
mente o sucesso. Mas, uns 15
minutos depois que o espetá-
culo começou, vi que ela esta-
Hide TranscriptShow Transcript