B6 TERÇA-FEIRA, 24 DE DEZEMBRO DE 2002
Cod B
GERALD THOMAS
CADERNO B
Indústria do oprimido
fascista, racista, rancoroso,
A coluna desta semana estava
praticamente escrita. Era uma
revanchista que um ser humano muito
mistura de euforia pelo fato de
mal resolvido com a vida chamado
estarmos às vésperas de um novo
Augusto Boal andou distribuindo por
governo e pela nomeação de
aí. Nesse e-mail, Boal se ressente por
Gilberto Gil como ministro da
não ter sido indicado com a fome de
Cultura. Ao mesmo tempo, eu iria
escrever se funciona mesmo esse
poder que deve ter para ser ministro
da Cultura e ataca Gil. Augusto Boal é
negócio de Ministério da Cultura,
um ser que vive da indústria do
já que cultura é uma coisa tão
oprimido. Assim como o Spiegelman
subjetiva que objetivá-la e ser Dia depois da projeção do filme, revelou há vários anos em seus
imparcial na hora de julgar os foi novamente o Zuenir (e o Átila
milhares de projetos e suas
quadrinhos (Maus) que existe a
Roque) que me apresentaram ao indústria do Holocausto que
tendências fica difícil no meio Junior. Ele é o coordenador cultural enriquece ainda muitos judeus, Boal
dessa imensa burocracia kafkiana. do movimento Afro Reggae, que estacionou no tempo e tudo que faz na
Os EUA não têm um ministério da
cultura. Têm um conselho que se
vem a ser, possivelmente, uma das vida é um fracasso. Sua Carmem de
coisas mais importantes e mais
revesa (o National Endowment for the
Bizet era, no mínimo, de se esconder
revolucionárias que já aconteceram
Arts), constituído por artistas e
debaixo das poltronas. Teve algo dele
nesse país em todos os sentidos,
intelectuais. A Inglaterra idem. A
que naufragou no João Caetano (nem
pela grandeza de assuntos que
Alemanha dividiu seu ministério por
me lembro o nome, mas consumiu
cobre e quantidade de buracos milhões de dinheiro público) e dirige
condados. Mesmo assim é complicado. sociais que tenta (e consegue) tapar. comediazinhas tradicionais de quinta.
A França pós Jack Lang é um O Junior, um amigo dele, de nome
JB, e eu engatamos numa conversa
entusiasmante e fascinante que
durou horas no meu quarto do
Everest Park Hotel. Parei de ficar
desastre.
Ao mesmo tempo, no meio da
semana passada, o Zuenir [Ventura]
havia me convidado pra ver uma
sessão fechada de
Atacar Gilberto Gil, um filho de
Ghandi, um dos maiores músicos do
mundo e um dos homens que só
espalharam alegria, prazer e lucidez
de quatro décadas para cá é um
atestado de
senilidade. Coisa
Onibus 174. Saí da
sessão várias vezes pra
DENTRAD burguesinho. Deve
chorar, vomitar e
tentar rejeitar aquilo
que eu via. Quer dizer,
não o seqüestro em si.
Tudo aquilo eu tinha
visto, ao vivo,
enquanto acontecia. O
documentário mostra
um lado que nos afeta
e nos responsabiliza
(nós, os brancos de
classe média e média
alta) e traz entrevistas
brilhantes,
absolutamente
brilhantes, de Luiz
Eduardo Soares sobre
MAN
a invisibilidade desses meninos de
rua que tentamos ignorar há tantas
décadas. O que o filme mais sublinha
é a total ausência de alma desses
meninos. Mas isso não é particular
deles e sim da humanidade moderna.
Não vejo muita diferença entre eles e
qualquer robô humano sentado hoje
em frente a uma televisão qualquer
vendo tragédias intercaladas com
comerciais, olhando tudo com
indiferença, num mundo cada vez
mais frio, individualista, voltado para
o vazio, o branco sobre o branco de
Joseph Albers numa Bauhaus que se
acreditava moderna e linda mas que
não passava de um início de fascismo.
ser resultado da
dicotomia entre a
teoria do oprimido
que prega para
pequenos núcleos
espalhados pelo
mundo e que
realmente acreditam
que ele foi torturado,
tadinho, e a bela vista
para o Arpoador que
tem de seu
apartamento.
Boal azedou o
nosso prazer em
entrar o ano novo
pensando nessa besteira de
com uma cara genuinamente
esperança: tem gente real
brasileira e orgulhosa, com um
trabalhando, caramba! Tem esses presidente que não tem diploma e
caras maravilhosos e tem o Gil no que não tem vergonha de chorar e
poder e tem a cultura brasileira e com um ministro da Cultura que
existe uma identidade, uma alma, atinge a nossa alma porque é o
uma auto-estima enorme e uma melhor símbolo da verdadeira
fome a serem resgatadas. Vai ser cultura brasileira. Que pena! O
difícil. Mas vai ser feito.
invisível
Augusto Boal jogou vinagre
Chegaremos lá. Acompanhei o Junior, no vinho dionisíaco, mas, quem sabe,
o Zuenir, o Caetano e o próprio Gil em questão de três, quatro ou cinco
nesse último domingo no Jardim dias, a gente nem se lembre mais
América. E vi os olhos de Caetano dele.
brilharem, dizendo: "Cara, como isso
aqui é interessante!". Mas é hora de
interromper o entusiasmo dessa
coluna por causa de um e-mail
Se até agora o teu teatro foi o
teatro do invisível, obrigado, Sr.
Boal, por torná-lo visível: ele é
horroroso, preconceituoso e racista.
Devopera@aol.com