ESPECIAL 1968
O jornalista Zuenir Ventura, autor
de 1968 - o ano que não terminou,
continua obcecado com um mundo
que se rebelou em plena guerra fria
A atualidade de
1968
Por AZIZ FILHO
V
inte anos depois de lançar 1968 - o ano
que não terminou, Zuenir Ventura, 76
anos, dá os últimos retoques em 1968
terminou ou não terminou?. Em busca
da resposta, o jornalista entrevistou per-
sonagens da história inaugurada pela re-
beldia mundial. O que mais intriga Zuenir é a coinciden-
cia, naquela época, de atos e atitudes em um mundo sem
internet, compartimentado pelos muros da guerra fria.
"Ao mesmo tempo os jovens cantavam a mesma música,
deixavam o cabelo crescer e mudavam o comportamento
sexual", recorda o escritor.
ISTOÉ - Terminou ou não terminou?
Zuenir Ventura - Não cheguei a uma conclusio, mas 1968
provoca tanta polémica e divergência que parece estar vivo.
Não é visto como efeméride. Muita gente que participou
daquilo tudo foi para o poder, como José Dirceu, José Ser-
ra, José Genoino, só para ficar na política, Fernando Henri-
que e Lula reivindicam ter levado para o governo mais
pessoas de 68
ISTOÉ - Como seria o Brasil hoje se a repressão não
tivesse vencido em 68?
Zuenir - Seria dificil outro desfecho porque a linha dura já
tinha vencido a disputa intema co Al-5 só coroou a vitória.
Tudo foi pretexto para endurecer. Mas eu diria que, se a
juventude tivesse vencido, não seria uma catástrofe. Muitas
SINTONIA
Para Zuenir
ninguém explica
o vento de
liberdade que
soprow ao mesmo
tempo na Franca
no Brasil, nos
EUA e na
Tchecosloviquia
das melhores cabeças do Brasil passaram os melhores anos
de sua vida no exilio. Esse pessoal perdeu na politica, mas
ganhou no comportamento, como mulheres, os gays, os
ambientalistas, as minorias, a juventude. Tudo isso geri-
nou ou ganhou importância ali. Se hoje há minissaia e
homens com brinco é porque a destruição dos tabus come-
çou em 68 e ainda dura. A liberdade sexual sobreviveu até
à Aids. Não se valoriza mais a virgindade como tabu.
ISTOÉ - A direita acabou vencendo?
Zuenir - Há uma tendência mundial à direitização, com
exceção da América Latina. O Nicolas Sarkozy (presidente
da França) diz que quer acabar com 1968. Nos anos 60 se
dizia que o mundo caminhava para o socialismo, mas a
tendência atual é para a direita ou centro. Não é à toa que
Lula faz isso. Ele não tem nada de bobo. O Brasil é conser-
vador, conciliador, sempre temeu ruptura.
ISTCE/1987-28/11/2007
ISTOÉ - Por isso a geração 68 não venceu?
Zuenir O momento mais bonito de 68, e também o
canto do cisne, que marca o início do descenso, foi a
Passeata dos 100 Mil. A classe média aderiu, mas, a
partir dai, muitos lideres começam a radicalizar. Era o
que os militares queriam. Na passeata, um grupo gritava
que "só o povo organizado derruba a ditadura" e outro,
só o povo armado derruba a ditadura". O momento
mais insano foi o Congresso de Ibiúna, com 920 pessoas
presas. Foi um gesto de insensatez absoluta, que acabou
no confronto
ISTOÉ - Qual foi o maior dos legados culturais?
Zuenir - Aquela geração continua atuante e influente.
Chico, Caetano, Bethânia, Milton, Gil. É uma geração
matriz, com prestigio. A tropicalia é nosso último movi-
mento cultural importante, enquanto pessoas na mesma
ISTOÉ/1987-29/11/2007
direção, com mesmas idéias, padrões, valores estéticos.
Não tivemos mais nada parecido. O principal da tropica-
lia foi acabar com o Mo, o engajamento cultural
com viés demagógico,
Paris e Praga influenciaram 1968 brasi.
do em nome da nacionalida-
de, dos valores pátrios. Rompe com a visão do povo
ingenuo que precisa de ajuda. A peça mais tropicalista
foi Roda viva, que o Zé Celso Martinez Correa transfor-
mou em teatro de agressão. Ele espremia um figado e
espirrava sangue na platéia, achava que deveria agredir
o público, não agradá-lo. O tropicalismo deu liberdade à
cultura
ISTOÉ
leiro?
Zuenir - Em março, eu trabalhava na revista Visão,
que era perto do Calabouço. Quando ouvimos o tiro
que matou Edson Luiz, descemos e acompanhamos a
multidão com o corpo até a Cinelândia. Em maio, eu
estava em Paris, quando estourou a coisa lá. Estavam o
Zé Celso, o Leon Hirszman, o Fernando Henrique
Quando fui preso no
Brasil, em dezembro, o interroga-
tório foi um diálogo de malucos. O coronel dizia: "É
muita coincidência, senhor Zuenir." E eu: "É coinci-
dência mesmo, coronel." Ele: "Mas é muita, né?" E eu:
"É, muita." Fiquei três meses preso. Eles não perce-
biam que, aqui, aconteceu antes. Não havia essa influ-
ència direta, as coisas demoravam a chegar. Ninguém
sabia quem era Marcuse ou Daniel Cohn-Bendit. Ape-
sar da paranoia da guerra fria, houve um vento de
liberdade e renascimento na França, Tchecoslovaquia,
Polônia, Japão e até nos
Estados Unidos, uma sintonia
planetária que não se consegue explicar
ISTOÉ - O que pode te-la provocado?
Zuenir O americano Mark Kurlansky diz que nunca
houve um ano como 1968 e é improvável que volte a
haver. Foi uma contestação anárquica a tudo do passado
autoritarismo, familia, politica convencional, hierar-
quia, escola, tudo. Ao mesmo tempo os jovens cantavam
a mesma música, deixavam o cabelo crescer e mudavam
o comportamento sexual. A mulher foi se liberando em
vários paises, com sistemas distintos. A Primavera de
Praga foi contra a União Soviética. Só os militares viam
o mundo dividido em dois. Se você não era de um lado,
cra de outro.
ISTOÉ - Por que a luta pela igualdade social não mo-
biliza mais os jovens?
Zuenir É a grande questão de hoje. Acho que a
decepção política levou esses jovens a uma descrença
de tudo. São mais sensíveis à causa ecológica porque
a social se mistura com a politica e o jovem não quer
saber de politica. Em 68, até o sexo era um gesto
político. Você jamais transaria com uma mulher rea-
cionária. Tudo, inclusive a cultura, passava pela poli-
tica. Outro problema é o individualismo, a preocupa-
ção muito mais consigo mesmo do que com o coleti-
vo. Seria melhor uma geração furiosa do que apática.
Essa anestesia é a pior coisa.