PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Redação
DISCO LANÇAMENTO
Gil volta a opor tradição e progresso em 'Quanta?
Fatos Reprodução
citesti
"Quanta" quebra cinco anos de
silencio do compositor Gilberto
Gil como o primeiro disco solo de
faixas inéditas lançado por ele des-
de "Parabolicamara (92). É dis-
co duplo, com 25 novas gravações.
E, também, a exacerbação de
uma obsessão que ele já trazia in-
tensa em "Parabolicamara", a
dos efeitos da tecnologia sobre a
tradição --que, a bem da verdade,
foi fator impulsionador da explo-
são do artista, nos idos de 67, com
o movimento tropicalista.
Em "Quanta", tecnologia e tra-
dição adquirem nomes diversos:
ciência e arte. Para apresentar a
idéia, Gil começa optando pela tra-
dição e regrava "Ciência e Arte",
samba de Cartola e Carlos Cachaça
levado como manda o velho figuri-
no. Os termos que dão nome à can-
ção irão se repetir incessantemen-
te no decorrer do disco.
E disso que ele quer tratar agora,
mas o Gil de "Refazenda" (75),
interessado por filosofias orien-
tais, continua dominante em 97.
"Quanta" é disposto de forma a
repetir o princípio oriental do
yin-yang, de que Gil tanto gosta. O
primeiro volume é energético, um
tratado de pesquisa das relações
tensas entre arcaismo e novidade,
enriquecido pelo balanço conferi-
do por banda que conta com Jorgi-
nho Gomes, Arthur Maia, Marcos
Suzano e outros.
"QUANTA" FAIXA POR FAIXA
da Redação
Conheça a seguir "Quanta", o
novo disco de Gilberto Gil, faixa
por faixa. (PAS)
Quanta - O disco começa com
dueto de falsetes entre Gil e Mil-
ton Nascimento, em letra que re-
corre à tática tropicalista de con-
frontar futuro ("quantico") e
tradição ("cantico")
Ciencia e Arte - A tradição toma
conta da segunda faixa, compo-
sição dos sambistas da Manguei-
ra Cartola e Carlos Cachaça. A le-
tra ganha referência adicional ao
físico Cesar Lattes e ao pintor Pe-
dro Américo.
Estrela - "Há de surgir/ uma es-
trela no céu/ cada vez que ocê
sorrir", canta, secundado por ta-
blas e congas de Suzano.
Dança de Shiva. A contrapo-
sição se dá aqui entre a divinda-
de hinduista Shiva e a "fraude do
Thomas" -o guru e paranormal
Thomas Green Morton (o que en-
sinou o "rá" a Baby Consuelo).
Vendedor de Caranguejo - Ba-
terias e teclados programados
invadem a tradição da composi-
ção de Gordurinha, que Clara Nu-
nes gravou em seu disco de 72 (o
mesmo em que cantava "Clari
ce", hino tropicalista de Caeta:
leno). A evocação póstuma ao ho-
Quanta
Gilberto Gil
Aqui e ali, o yang do primeiro e
ensolarado CD recebe as sombras
do yin, em faixas calmas como
"Chiquinho Azevedo" ou "Es-
trela".
O volume 2 é o reverso. Sombrio,
dedica-se, mais que à pesquisa, a
um suceder de homenagens a Tom
Jobim, a Milton Nascimento, a
João Gilberto, a Mário Lago.
As louvações se intercomuni-
cam: "De Ouro e Marfim", para
FOLHA DE S.PAULO
mem-caranguejo Chico Science
torna-se inevitável. .
Agua Benta - A ciência é te-
matizada pelo conflito entre os
poderes da medicina e as crenças
de cura popular. Vencem as me-
zinhas do feiticeiro de Ossain,
numa primeira tomada de posi-
ção de Gil no disco.
Chiquinho Azevedo - Compo-
sição inédita desde 76, é a pri-
meira balada a aparecer em
"Quanta". O personagem fora
preso com Gil à época por porte
de maconha e é resgatado como
num desagravo (lela ao lado).
Pílula de Alho - É hora de for-
ró, em nova loa à tradição, via
alho e seus poderes medicinais. É
composição inédita de 82.
Opachoro - A abertura épica
se dissolve em reggae jamaicano
abrasileirado, em oração a Oxa-
lufa e a seu cajado (opachoro).
Graça Divina Gil louva em
tempo de ciranda deuses católi-
cos que são também nomes de
cidades brasileiras.
Pela Internet - É hora de futu-
ro. Gil parodia -- usando termos
ciberespaciais como web site,
homepage e e-mail- uma das
pedras fundadoras do samba, o
hoje ancestral "Pelo Telefone",
de Donga.
Guerra Santa - Globalizado,
Tom, é batuque afro que mais lem-
bra Milton e "Sala do Som", para
Milton, é bossa nova que mais
lembra Tom (e Gil canta
em vocais
emprestados da técnica e da elo
quência de João). Como acontece-
ra antes, o yin do CD 2 recebe luz
ocasional, em "De Ouro e Mar-
fim" e "La Lune de Gorée".
A faixa-síntese de todo o proces-
so, o consumidor, por enquanto,
não terá acesso. "Objeto Ainda
2
Quanta
Ciência e arte
e
Estrela
Danica de Shiva
ondedor de caranguejo
Agua benta
Chiquinho Azevedo
A capa (à esq.) e a contracapa (à dir.) de 'Quanta', primeiro disco solo de músicas inéditas gravadas em estúdio por Gilberto Gil desde 1992
Gil usa samplers para falar de
horrores arcaicos situados na
curva do tempo entre a Inquisi-
ção e o chute na santa do pastor
evangélico dos anos 90.
Objeto Sim, Objeto Não - Em
69, as portas do exilio, Caetano
lançou "Objeto Não-Identifica-
do" e Gil, "Objeto Semi-Identifi-
cado". Esta é a terceira ponta,
gravada naquele ano em disco
tropicalista de Gal Costa.
A Ciência em Si- A parceria
com Arnaldo Antunes abre, lenta
e tensa, o segundo CD.
Atimo de Pó - Escrita com Car-
los Rennó em levada de bossa
nova, é rol semiconcretista de
elementos: quark, bactéria, gala-
xia, eon, lon, magnéton, elétron,
glóbulo, yang, yin, spin...
Labirinto Faixa de Jorge
Mautner e Nelson Jacobina, tem
cheiro de tributo a Mautner,
eterno e maldito profeta/cientis-
ta maluco da MPB.
Fogo Liquido - A "fossa nova"
é o gênero encontrado por Gil
para falar de fogo e paixão.
Pop Wu Wei - Mais filosofia
chinesa: wu wel é, segundo Gil,
"ação sem intenção", e o pop é
meio um samba canção à antiga.
O Lugar do Nosso Amor - Ou-
tra autèntica levada bossa nova
Pilula de alho
Opachon
Graca divina
Pola Internet
Guerra santa
Objeto sin
objeto nao
terça-feira, 8 de abril de 1997 ilustrada 43
Menos Identificado", de Lucas
Santana e Moreno Veloso, fica de
fora porque não se obtiveram ain-
da todas as autorizações para os di-
versos samplers utilizados.
Eles são curiosos: incluem, além
das esperáveis "Tropicalia" e
"Chega de Saudade", excertos de
raps, cantos indígenas, mangue
beat e de "No Future", dos Sex
Pistols (que antecede a frase "a ci-
vilização ocidental não é muito re-
prepara as homenagens aos pro-
fessores Tom Jobim e João Gil-
berto, que virão mais adiante.
De Ouro e Marfim - Começa a
sucessão de oferendas. Esta é um
batuque afro em honra a Tom Jo-
bim, o "patrono dessa ordem ve-
nerável da canção".
Sala de Som - O próximo ho-
menageado é Milton Nascimen-
to. A faixa celebra o africanismo
de Milton em interpretação pro-
positalmente puxada nos vocais
preguiçosos e tristonhos à João
Gilberto. Foi composta em 77.
Um Abraço no João - Como
em "Um Abraço no Bonfa", de
João Gilberto, Gil não ousa can-
tar no sambinha instrumental em
veneração a João, de 81.
O Mar e o Lago - Por fim, é a
vez de Mario Lago, o ator, mas
também o co-autor, com Ataulfo
Alves, de "Saudades da Amélia",
pilar do samba à velha moda.
La Lune de Gorée - Um dos
mais belos poemas do CD (semi-
oculto pelo idioma francès), a
parceria com Capinan chora a
dor universal dos escravos da
ilha de Gorée, entreposto de tra-
fico até fins do século passado.
Nova - "Quanta" aponta o fu-
turo, numa parceria entre Gile
Moreno Veloso, filho de Caetano.
A ciência e
Atimod
Labi
Fogo
Pop we
Or do nosso
De ouro e ma
Sala do
Um abraço no
O mare
La luna de
Oblato ainda m
identifi
quintada em coisa nenhuma").
De olho no futuro, Gil ainda
aposta tudo na tradição, seja abor-
dada de forma direta ou enviesada.
A faixa citada o faz pelo viés, co-
municando-se com "Objeto Sim,
Objeto Não", versão mansa de
canção gravada por Gal em 69. O
que se vé é que o Gil de hoje quer
conversar com o Gil inovador de
outrora, voltando à sua gênese
-que hoje já virou tradição.
Em vários outros momentos, a
tradição bruta é o anzol do CDEO
que se dá em "Vendedor de Ca-
ranguejo", de Gordurinha, já gra-
vada por Clara Nunes, ou em "Pi-
lula de Alho", forró medicinal
muito próximo de "Jurubeba",
que gravou com Jorge Ben em 75.
Até por isso ---já que é na tradi-
ção que Gil se move com desenvol-
tura-- "Quanta" torna-se disso-
nante quando se joga por demais
ao futuristico, como na letra cari-
cata de "Pela Internet" ou na ci-
bernética oca de " Atimo de P6"
Af, futurista demais, Gil se arris-
ca por caminhos que perigam da-
qui a pouco a se tornar datados.
Mas quase sempre predominam
a festa rítmica de batuques porten-
tosos (Água Benta", "Opacho-
rô", "Pela Internet") e as sutile-
zas da fossa bossa-novista ("Fogo
Líquido", "Labirinto").
Quando é assim, "Quanta" re-
vela-se disco vigoroso como desde
"Refavela" (77) não se via em Gil.
Percebe-se que, mesmo que se
mantenha cacique mandão numa
música popular de poucos indios,
ele há muito não se despojava com
tal intensidade da sombra inibido-
ra de seu duplo eterno Caetano Ve-
loso. Mesmo com todo o tecnoa-
parato, mostra-se Gilberto Gil, só e
simplesmente. Não é pouco.
Disco: Quanta
Artista: Gilberto Gil
Lançamento: WEA
Quanto: R$ 36, em média (CD duplo)
Real A foto mostra Gilberto Gil, o músico Moacyr Albuquerque, o
menino salvado, seu salvador Chiquinho e Dominguinhos; a história
está na inédita 'Chiquinho Azevedo' (leia à esq.)
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