SOCIEDADE HISTÓRIA
ÉPOCA - Os protestos contra a
ditadura, o vanguardismo estético e a
irreverência comportamental
transformaram mesmo o mundo?
Ventura - Do ponto de vista político,
essa geração, essa garotada, queria mudar
o mundo. Achava que se podia mudar
tudo através da ruptura, da revolução. A
ironia da história é que eles não fizeram a
revolução política, mas acabaram fazen-
do uma revolução cultural. Realmente
eles mudaram os costumes, mudaram os
hábitos, mudaram a maneira de pensar,
a maneira de ser, valores. Movimentos
como o ecológico, o movimento feminis-
ta, o movimento gay, o movimento negro
foram movimentos que ou nasceram em
1968 ou adquiriram uma importância
muito grande nesse momento.
ÉPOCA - Que balanço pode ser feito,
seja positivo ou negativo?
Ventura - Há hoje duas maneiras de
ver 1968, a apologética, de dizer que
foi tudo maravilhoso, o que eviden-
temente a gente sabe que não foi; e
rejeitar 68 com a mesma radicalidade
com que o movimento surgiu. Ni-
colas Sarkozy (presidente da França)
disse que ia acabar com o projeto de
1968". Mas tem no governo o que eles
chamam de "herdeiros de 68". Você
encontra argumentos para mostrar
que muita coisa boa aconteceu - a
valorização das minorias, a preocupa-
ção com o outro, os movimentos cole-
tivos, a generosidade, a entrega a uma
causa a ponto de você arriscar a vida
por ela, a ética na política, a paixão
pela causa pública foram valores de
68 que são inestimáveis até hoje. Mas
por outro lado houve o que eu chamo
de degeneração de 68, um desvirtua-
mento de algumas coisas que naquele
momento eram positivas. As drogas,
por exemplo: naquele momento se
acreditava que eram um instrumen-
to de ampliação dos horizontes, de
conhecimento, de avanço da mente.
Hoje as drogas são um instrumento
de morte, servem para matar.
@ www.epoca.com.br
Leia a integra da entrevista de Zuenir Ventura
76 I REVISTA ÉPOCA 17 DE JANEIRO DE 2008
O que terminou - e o que não
Em texto exclusivo para ÉPOCA, Zuenir Ventura
faz um balanço do legado de um ano único
O que terminou
Transar sem camisinha - Os anos 60
haviam tornado o secular preservativo
de borracha um inútil anacronismo. Gra
ças às pílulas anticoncepcionais, aquela
geração inaugurou o prazer sexual sem a
ameaça da gravidez indesejada. Nos anos
80 a aids acabou com a farra, trazendo
de volta o uso obrigatório da incômoda
camisa-de-vênus. Em matéria de anticon-
ceptivo masculino, a ciência ainda não
descobriu nada que fosse mais eficaz que
a popular camisinha. Segundo o psicana-
lista Contardo Calligaris, o sexo protegi-
do destruiu a revolução sexual. "Para um
adolescente de 20 anos, transar significa
ter uma ereção, colocar a camisinha, não
poder retirar antes e tirar com cuidado
para evitar que o preser-
vativo fique dentro. Para
alguém que tem 50 anos,
transar é transar um pou
quinho, parar, recomeçar
recolocar, enfiar, se beijar
se chupar."
Marcuse era
mais popular
que Marx
e Mao.
Os filmes de Godard - Fora
os freqüentadores de fes
tivais e cineclubes, quem
entraria hoje numa fila para
assistir a um filme de Jean-Luc Godard?
guém acertaria uma questão sobre o
que pensavam os "3 Ms" que fizeram a
cabeça dos jovens de 68 - mesmo sem
tê-los lido. Dos três, o mais popular foi
o professor universitário Herbert Mar-
cuse, de 70 anos, que o New York Times
chamou de "o mais importante filósofo
vivo". Dos três, atualmente, o menos
procurado no Google é Marcuse, com
1,15 milhão de acessos. O campeão é
Marx, com 33,2 milhões. Mao tem 6.2
milhões. Nenhum se compara a outro
agitador, recordista com 179 milhões
de citações, embora tenha morrido com
apenas 33 anos: Jesus.
Hoje quase
ninguém sabe
quem foi
No entanto, ele foi um dos principais
personagens do cinema em 68, pelo que
criava nas telas e pelo que aprontava fora
delas (parou o Festival de Cannes, depen-
durando-se na cortina do palco). O seu
filme A Chinesa, lançado um ano antes,
"foi, como maio de 68, uma revolução na
linguagem", escreveu a crítica Ivana Ben-
tes, que acrescentou: "Um acontecimen-
to-signo que indicava a potência do cine
ma como pensamento e intervenção, uma
outra forma de fazer política". Ele continua
um cult para os cineastas, mas terminou
como moda para o público em geral.
O que não terminou
Nélson Rodrigues - Resistiu tanto e tão
consensualmente que corre
o risco de sucumbir ao que
decretou em 68: "Toda una-
nimidade é burra". Amado e
odiado, é agora só admirado.
Continua sendo o frasista
mais citado do país, até por-
que, como ele mesmo disse,
As idéias de Mao, Marx e Marcuse - Se
caisse num vestibular hoje, quase nin-
"o brasileiro mata e morre
por uma frase". Felizmente,
quem não terminou foi o Nél-
son Rodrigues subversivo
em arte e não o reacionário em política.
Pílula anticoncepcional - Desenvolvi-
da em 1957, licenciada em 1960, chegou
aos campi das universidades em 68.
Hoje pode ser comprada sem receita
médica e é distribuida gratuitamente
por muitos governos. A ela, mais do que
às idéias, se deve a revolução sexual da
época. No Congresso da UNE em Ibiúna,
a polícia exibiu para a imprensa as pílu-
las apreendidas, a exemplo do que faz
agora com os comprimidos de ecstasy
recolhidos em festas raves. Apesar de
condenadas pela Igreja Católica, que as
considera um pecado, quando não um
crime, são um dos medicamentos mais
vendidos no mundo,
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