Gil lança livro com mais de 400 letras, entre elas as inéditas do novo disco
ANDRÉ LUIZ BARROS
O autor da letra "Quanta do latim/ Plural de
quantum! Quando quase não há/ Quantidade que se
medir/ Qualidade que se expressar”, da música que
dará nome a seu novo disco, Quanta (a sair
março), é capaz de criar deliciosos versos “de mesa de
botequim", como: “Alô, alô, Realengo – aquele
abraço!". Aos 54 anos, Gilberto Gil se
como que vive hoje na profundidade da
superficie: "Hoje vivo na superficie
do profundo. Este
livro
mim, a forma como criei minhas canções. Minhas
motivações intimas, que agora estou passando adian-
te, não pertencem mais somente a mim", diz um Gil
já completamente recuperado da pedra no rim expeli-
da há semanas.
O livro é Gilberto Gil - Todas as letras (Editora
Companhia das Letras; 390 págs.; R$ 35), organizado
pelo poeta e letrista Carlos Rennó, com mais de 410
letras
80 comentadas por Gil e, surpresa, 94
inéditas (leia letra inédita ao lado). São músicas resga-
tadas em arquivos esquecidos de gravadoras, papéis
dispersos em baús e velhos cadernos de anotações,
como o incrível primeiro caderno de composições do
jovem
disco,
o compacto duplo Gilberto Gil - Sua música,
sua interpretação. caderno estava com a Belina
(a primeira
Aguiar Gil Moreira) e ela
a mulher, Belina de
até
há mais de 30 de algumas melodias de músicas feitas
1
ria da primeira musa
, surpreende-se Gil. "É a memó-
", brinca Rennó.
A edição de luxo, de capa dupla, é a mais
completa
compilação da obra de um compositor brasileiro,
com fartura de fotos raras e cronologias que foram
fruto de pesquisa com amigos antigos de Gil
. Entre as
músicas resgatadas dos arquivos, há coisas bem cu-
riosas, como Pilula de alho, encontrada pelo pes-
quisador Marcelo Froes
nos arquivos
da Polygram .
Gil
pretende gravar o xote-rock no próximo disco:
"Ce toma uma daquela/ Nem sabe o que é que sen-
te/ Mas a infecção já era". Há pérolas como Louco
coração, Triste serenata e Sonho triste, todas de 1962.
“A idéia inicial era publicar somente as letras cujas
músicas não tinham se perdido. Mas havia tanta
coisa interessante sem música que resolvemos publi-
r tudo”, diz Carlos Rennó.
Textos do cantor e compositor Arnaldo Antunes e
do letrista e musicólogo José Miguel Wisnik servem
de prefácio. Gil lança o livro no mesmo momento em
que
dá os
os retoques finais em seu novo CD, que
mantém a linha conceitual" de discos como Refa-
zenda e Parabolicamará, com temas que davam uma
certa homogeneidade a esses trabalhos. "Isso tudo
começou com o Sargeant Pepper's Lonely Heart Club
Band. Depois veio o disco Tropicalia, no Brasil. Eu
sempre fiz músicas pensando numa idéia geral para
car
meu proximo disco.
Mas nunca como no
Quanta", adianta.
Carlos Rennó lem-
bra que Gil começou
a se
feitura
aperfeiçoar na
letras
quando fazia jingles
na Bahia. "Músicas
como Jurubeba, Pi-
lula de alho e Ume-
boshi fazem parte
dos jingles medici-
nais o Gil", brinca
Rennó.
Os comentários
de Gil são pistas de
sua forma toda pró-
pria de inspiração
are lo
Em Serafim (1983), ele explica que o verso "O som
do ferro sobre o ferro/ Será como o berro do
carneiro/ Sangrando em agrado ao grande Ogum"
foi mudado
para "Oberro do bezerro" quando sua
mulher, Flora, que é cabeça feita no candomblé,
reclamou que Ogum nunca come carne de carneiro.
Mas a idéia do livro surgiu de uma música mais
afeita a pistas de dança do que a estantes de
bibliotecas: Realce.
"Na verdade, é uma defesa do criador em rela-
ção às críticas à música. Realce era considerada
apenas um hit de rádio, e eu quis explicar cada
verso para mostrar como é uma canção bastante
burilada", diz Gil. O primeiro sucesso, Domingo no
parque, surgiu quando o compositor foi visitar o
pintor baiano Clóvis Graciano com a segunda mu-
Ther, a cantora Nana Caymmi. Depois de ver paisa-
gens, conversas e até cheiros da Bahia, Gil voltou
para casa e, às 2 da madrugada, sentiu-se inspirado
pelo clima baiano e começou a compor a cena em
que "o rei da brincadeira" José mata o “rei da
confusão", João. “Aquilo saiu em duas horas, já na
forma narrativa. José não ia matar o João, mas
surgiu a rosa, o morango e outros objetos verme-
lhos. De repente, José quis ver sangue", revela Gil.
O disco
Quanta, tem como idéia central o
casamento da ciência com a arte. Tema antigo de
canções de Gil (de Cérebro eletrônico a Parabolica-
mará), ele nunca foi explorado de forma tão direta,
em músicas como Dança de Shiva (“Deuses em
coma/ Homens em vão/ Pela ciência/ Pela can-
ção"), Pu wu wei, Opachorô, A faca e o queijo, Pela
internet, A ciência em si (letra de Arnaldo Antunes)
Atimo de pó (letra de Renno), La lune Gorée, (letra
de Gil e Capinam) e Guerra santa, essa já conhecida
pelo público
PU WU WEI
O movimento está para o repouso
Assim como o sofrimento está para o
gozo
Meu bem, eu sei que posso estar con-
tando prosa
E como é perigosa minha afirmação
Sair do movimento bem que pode ser
um tormento
Eis outra constatação
O fato é que eu sou muito preguiçoso
Tudo que é repouso me dará prazer
Se Deus achar que eu mereço viver
sem fazer nada
Que eu faça por merecer
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