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No dia em que os filhos chegavam e
diziam que não queriam estudar mais,
que preferiam trabalhar, a decisão era
aceita e respeitada. "Cada um fez o que
quis e hoje todos são felizes”, diz.
Bela lição de uma mãe que veio de
origem muito humilde, mas teve aces-
so a teatro, música e poesia; estudou
em escola particular; aprendeu a falar
francês e a tocar piano. Tudo porque
foi criada na casa de uma família rica
da região. Assim, arte e cultura perme-
avam o dia-a-dia da família Velloso. A
própria
Dona Canô costumava cantar
para todos e sempre disse que a músi-
ca é a melhor coisa do mundo. Sob tal
influência os oito filhos aprenderam a
tocar instrumentos. Os dois famosos
não são os únicos que seguiram liga-
dos à arte: Nicinha também toca piano
na igreja e Rodrigo faz tecelagem.
Se perguntada sobre sua fama,
Dona Cano garante que não entende.
"Apenas fiquei conhecida por causa de
meus dois filhos que nunca se esquece-
ram de onde vieram nem da mãe que
têm", diz. "Cumpri o meu dever, soube
criar meus filhos, todos são os mesmos
da época em que eram crianças”, fala,
ressaltando que Nicinha, Clara Maria,
Maria Isabel, Rodrigo, Roberto, Caeta-
no, Maria Bethânia e Irene não deram
trabalho. E conclui que talvez, pelo fato
de ter criado bem os filhos, tenha sido
recompensada por uma vida tão boa.
Reunir a família toda é difícil - Nici-
nha e Rodrigo estão sempre por perto;
Mabel, Clara e Irene vivem em Salvador
e aparecem com freqüência; já Roberto,
Bethânia e Caetano moram mais longe,
trabalham muito e são mais raros. Isso
sem falar nos nove netos e cinco bisne-
01 Edson Ruiz 1 2 e 3 Marcelo Tabach/Contigo!
tos. Mas juntar todo mundo, como ein
setembro, em seu aniversário de 100
anos, é motivo de muita alegria. Os que
vêm de fora se dividem entre os dez
quartos da casa e o encontro, regado
a muita comida gostosa e bom papo,
estende-se noite adentro. O carinho
de todos é evidente. "Caetano quando
chega logo põe a cabeça no meu colo e
todos ainda me pedem a bênção", fala,
já sonhando com o próximo encontro.
Celebração da vida
A fragilidade do corpo miúdo es-
conde uma força que, segundo ela,
vem da fé. Sinais de sua devoção estão
por toda parte. Bem na entrada de seu
quarto, há um santuário com grande
coleção de imagem de santos. “Nem sei
quantos tem, nunca contei”, comenta.
Na cabeceira da cama, colares dos san-
tos e fitas do Senhor do Bonfim confir-
mam o tão falado sincretismo religioso
da Bahia. "Sempre tive muita fé. Assisto
à missa na TV todos os dias e uma vez
por semana vou à igreja", afirma Dona
Cano, que gosta de festejar os santos.
Na véspera de São João, faz ques-
tão da fogueira na porta, da casa toda
enfeitada, da mesa farta de comidas
típicas - canjica, amendoim, milho co-
zido, bolo de fubá - e licores, em espe-
cial o de jenipapo, para receber quem
quiser entrar e papear um pouco. Ela
celebra também São Pedro, faz o ca-
ruru de São Cosme e São Damião, a
trezena de Santo Antônio, passa Natal
e ano-novo na casa de praia em Cabu-
çu, a 29 quilômetros de Santo Amaro,
e em fevereiro comanda a tradicional
lavagem da escadaria da Igreja Nossa
Senhora da Purificação. Aliás, por cau-
sa dela essa comemoração entrou para
o calendário oficial do estado. Tudo é
motivo de festa em Santo Amaro e, por
extensão, na casa dos Velloso, onde os
quitutes são preparados por Isaura, a
cozinheira de 40 anos, as ajudantes Fifi
e Odília e mais quem se oferecer para
dar uma mãozinha. E invariavelmente
aparece ajuda para mexer os panelões e
caprichar nas iguarias.
Coração franco
Mesmo tendo sido sempre muito
animada, Dona Canô não quis tomar
conhecimento de como seria a come-
moração do centenário. Do que ela fez
questão mesmo foi da missa. O resto
foi combinação dos filhos. Veio gente
famosa - Gilberto Gil, Regina Casé, só
para citar algumas –, mas o povo de
Santo Amaro também participou da
celebração, é claro. Para eles, foi orga-
nizado um brunch em plena praça, em
frente à igreja.
Pela eterna disposição de receber as
pessoas, seja lá quem for, e por tudo o
que já fez por Santo Amaro, Dona
Cano é adorada nesse pedacinho do
Recôncavo Baiano. Da mesma manei-
ra que adotou e deu muito amor a duas
de suas filhas - Nicinha e Irene -, ela é
também a mãezona dos santo-ama-
renses. Quando ela passa nas ruas, todo
mundo já sabe: Dona Cano está indo
fazer o bem. Em seus aniversários nun-
ca quer presentes, só comida ou mate-
rial de higiene que recolhe para doa-
ção. Seu nome batiza um centro oftal-
mológico para pobres, um teatro e
uma biblioteca na cidade. Segundo ela,
está aí a razão de sua longevidade: “Re-
cebo e dou muito amor, tenho prazer
de viver e paciência, sei que tudo tem
seu tempo". E alguém duvida?