RAUL SEIXAS
“Uma Relação Complicada”
Assim, o escritor e parceiro de Raul Seixas em alguns de
seus maiores sucessos, define a amizade que os unia por PAULO COELHO
M 1989, EU ESTAVA FAZENDO O CAMINHO
de Roma quando soube da morte de Raul
Seixas, em uma cabine telefônica, quan-
do liguei para o Brasil (como fazia uma
vez por semana) para ver se minha mu-
é mais atual que nunca. Vemos, nesse caso, a tragédia
como força que consolida a carreira de alguém. Ele não
precisaria ter morrido da maneira que morreu, mas re-
pito que foi sua escolha. A tragédia consagra - infeliz-
mente. Assistimos ao Jim Morrison no passado, e assis-
her estava bem. Tinha três moedas de timos ao Michael Jackson agora. A imprensa fez tudo
para destruir Michael Jackson e, quando ele morreu, a
comoção popular foi gigantesca.
O mesmo aconteceu com o Raul. No final de sua
vida, era convidado para programas de TV, visto como
uma raridade. A tragédia faz com que a pessoa ganhe
uma dimensão completamente diferente. Ou seja: ele
se sacrificou por isso. Desde os mitos mais ancestrais,
das mortes dos deuses, até hoje. John Lennon é mais
importante que Paul McCartney porque foi assassina-
do. Na verdade, ambos têm o mesmo peso. Você en-
frenta a tragédia e se transforma. Nossa relação era
pessoal e, claro, foi se desgastando. Duas personalida-
des muito fortes. Daí nosso trabalho ser muito critica-
do. Porque não era aquela coisa: "Me mande um cas-
cinco francos no bolso, um minuto e meio de conversa.
Eu disse: "Oi, Cris, tudo bem?" E ela: "Não sei se eu te
conto". Caiu a primeira moeda, depois a segunda e dai
ela disse: "O Raul morreu". Caiu a terceira moeda.
Ao contrário do que manda o figurino, eu senti uma
profunda alegria. Parecia que, naquele momento, Raul
estava livre, bem, contente. Lembro que passei o resto
desse dia cantando nossas músicas. Eu tinha publica-
do O Alquimista, mas não era o escritor que sou hoje
mesmo no Brasil. E continuei com aquela sensação de
que Raul, de alguma maneira, tinha cumprido a missão
a qual ele havia se proposto. Raul tinha vivido a lenda
da vida dele, feito tudo o que achava que tinha de fazer.
E não deixou absolutamente nada: foi uma escolha dele.
Nunca o vejo como uma
vítima do sistema ou um
cara que entrou num
processo de autodestrui-
ção - nada disso. Foi uma
escolha consciente, mui-
tas vezes, conversamos
Raul me ensinou que a cultura popular não é,
necessariamente, uma coisa negativa; que a
capacidade de se comunicar é muito positiva
a respeito. Eu sempre
demonstrei certo receio,
contudo ele dizia que eu
não me preocupasse: ele
estava fazendo exatamente o que queria. No dia de sua
morte entendi perfeitamente.
A nossa relação sempre foi muito complicada desde
o começo. Quando começamos a trabalhar juntos, nos
víamos todo dia. Ou ele vinha para minha casa ou eu
ia para a casa dele. Era uma relação muito intensa, e
uma competição acirrada. Raul sempre achava que eu
queria mostrar que era melhor que ele, e vice-versa. Eu
era o intelectual que sonhava morrer incompreendido,
e Raul tinha esse poder de comunicação muito gran-
de - muito grande. Pouco a pouco, nos começamos a
desenvolver toda a ideologia da Sociedade Alternativa,
unindo o ideário hippie. No disco Krig-Há, Bando-
lo!, a música-chave é "Ouro de Tolo", que é dele, e tem
"Rockixe", quase uma declaração de principios. Pouco
a a pouco começamos a nos entender. Apresentei as dro-
gas a Raul, as sociedades secretas e essas coisas todas.
Será que fiz bem? Raul entrou de cabeça nisso tudo.
Em dado momento, eu disse: "Chega, parei". Mas Raul
continuou, uma escolha absolutamente consciente, e
ninguém pode julgá-lo por isso.
A única coisa que me desagrada hoje é uma certa
manipulação da lembrança dele. E o que me surpreen-
de muito é a atualidade das coisas que fizemos e, tam-
bém, a atualidade da presença do Raulzito. Raul Seixas
Sem dúvida, minha vida tem dois momentos-chave:
um é o Caminho de Santiago, quando assumo, real-
mente, ser escritor. O outro é encontro com o Raul,
quando deixei de querer ser gênio incompreendido.
Recordo que eu dava poesias para Raul ler. A primei-
ra versão de "Al Capone", por exemplo, era um grande
tratado. O Raul disse: "Não é nada disso, cara." Eu, irri-
tado, respondi: "Você quer algo como 'Al Capone, vê se
te emenda?" Ele disse que sim. Eu respondi: "Raul, não
se escreve dessa maneira", mas a frase ficou em minha
cabeça."Vê se te emenda, que coisa horrorosa." E, só
para sacanear, continuei: "Já sabem de teu furo, nego,
no imposto de renda". E perguntei: "Você acha que isso
é bonito?" Ele: "É ótimo". Falei: "Então tá".
Fui para casa e escrevi a letra de "Al Capone". Ele
nunca dizia que a letra estava uma droga. Dizia: "Não
é assim, sabe?" Letra de música não é poesia. Letra de
música e letra de música. É preciso libertar-se um pou-
co dessa ideia. Aprendi fazendo letra de música que
preciso ser absolutamente objetivo - sem ser superfi-
cial. Quando você canta:
“Eu perdi o meu medo
da chuva / Pois a chuva
voltada pra terra traz as
coisas do ar", a frase se
encontra no contexto de
uma música sobre o casa-
mento, mas poderia mui-
to bem estar totalmente
separada desse contexto.
Quando terminei de es-
crever "Gita", cujo primeiro título era "A Letra A Tem
Meu Nome", a música ficou com quatro minutos. Eu
disse: “Po, agora vou ter que cortar". Ele retrucou: "De
jeito nenhum. Não vai cortar nada". Essa era a cumpli-
cidade que tínhamos. Para os padrões da época
"Gita"
era uma música muito longa. Ele disse: "Eu vou usar a
letra inteira". "A gravadora vai vetar", eu disse. "Não vai,
não", ele respondeu: “Já tive sucesso com o Krig-Há,
Bandolo!" E realmente não vetaram. Nessa noite, caiu
uma grande tempestade que cortou a luz. E nós com-
pondo "Há Dez Mil Anos Atrás" a luz de vela. Levamos
para a gravadora e a música deu certo.
Só vim a chorar a morte do Raul seis meses depois.
No dia da morte dele, eu senti uma espécie de estranha
euforia, Sonhei com o Raul, que ele estava muito bem.
Um belo dia, eu estava falando com um amigo, Edinho
Oliveira, e de repente eu disse: "O Raul..." E aí desabei,
comecei a soluçar. Não conseguia parar de soluçar, eu
chorava sem parar. Chorava tudo o que não havia cho-
rado pela sua morte. Quando terminei de chorar, senti
de novo aquela paz. Hoje, enfim, eu vejo Raul Seixas
tendo o reconhecimento que merece. Em vida havia
muito preconceito, todos achavam que MPB era au-
têntica e rock brasileiro não merecia nenhum respeito.
Mas as coisas são assim. Maktub.
ROLLING STONE BRASIL, AGOSTO, 2009. 73
sete que vou botar uma letrinha". Rolavam discussões
e momentos de agressão. Nunca chegávamos às vias
de fato, entretanto eu lembro que algumas vezes che-
gamos muito próximos a isso. Em Brasília, ele chutou
uma mesa e eu chutei um abajur. A gente ia se engal-
finhar, mas Gloria, que estava com ele, botou panos
quentes. Lembro de pensar: "Agora vai sair porrada".
Vinte minutos depois, estávamos sentados compondo.
Não ficava resquício de ódio.
A coisa que eu mais agradeço dessa relação foi ele ter
me ensinado que cultura popular não é, necessariamen-
te, uma coisa negativa. Ao contrário, a capacidade de se
comunicar com todos é muito positiva. No fundo, é o
objetivo do ser humano, a comunicação com seu próxi-
mo. A segunda coisa que ele me ensinou é a linguagem
e de como fazer uso dela. Eu me lembro de gostar de
músicas do Raul, antes de ele ser famoso, que ele fazia
para outras pessoas na CBS. Eu o ouvia e dizia: "Então
essa música é sua. Que maravilha!" Tem uma música
que diz: "Estou voltando pra casa / Camisa amassada
Mais um dia de trabalho/Que afinal chegou ao fim". Eu
não sei nem quem canta. Só vim saber muito tempo de-
pois que a canção era dele. Descrevia a rotina que tanta
gente vive, do cara que vai de ônibus trabalhar, Raul me
ensinou a ver isso e guardo até hoje.
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