Dois amigos

FIBRILAÇÕES
No início da década de noventa, a obra de Julião Sarmento sofreu uma grande transformação a partir da exposição Dias de escuro e de luz, que o artista realizou na Galeria Luís Serpa, em Lisboa. A violência profusa das suas obras dos anos oitenta deu lugar a grandes campos brancos nos quais algumas personagens femininas se movimentam, executam gestos misteriosos, manipulam objectos cortantes, escondem-se. As telas são cobertas por uma camada branca que é suporte para as marcas visíveis de todos os estádios desses desenhos que sobre elas surgem, ou se desvaneceram. As telas brancas (como são conhecidas) constituem palimpsestos desses gestos que são como marcas do tempo, como memórias que permanecem de mulheres que encenam a sua domesticidade, que se oferecem.
Em nenhuma destas obras as mulheres têm rosto.
Nenhuma delas possui a sua identidade violada pela exposição do rosto. De facto, não são uma ou outra mulher, mas exemplos de uma procura incessante pela cartografia do desejo, pela violência do espaço entre elas e os móveis, entre elas e os alguidares, ou os pés, ou as mãos, ou as mesas, as facas, os dedos (por vezes amputados), o sexo, só aludido.
Na pintura de Julião Sarmento surge, assim, um léxico de imagens que se repetem – e o carácter repetitivo, obsessivo, é um factor essencial da tensão que as suas telas suportam e que, em fibrilação, passam, como um halo, ou um som – um zumbido, por exemplo – para o espectador.
Neste filme feito de inserts, de montagens de imagens que por vezes escapam pelos limites da tela, há um cinema surdo mas voraz na forma como capta o olhar do espectador e o deixa suspenso no arco em tensão que desenha.
Remetidos para a nossa condição voyeurística, apanhados na teia daquela que se oferece ao nosso olhar, ficamos inevitavelmente sós perante o ecrã em que a tela se transformou à espera da nossa projecção.

Delfim Sardo