PEQUENOS EQUÍVOCOS SEM IMPORTÂNCIA
Há artistas cuja obra vive num limbo muito estreito entre a sua vida pessoal, as suas pequenas (ou grandes) obsessões, a ironia sobre esta condição radicalmente intransmissível do trabalho artístico e o carácter sinuoso do percurso que vão desenvolvendo.
Ana Jotta é exactamente um destes artistas.
Ao longo dos anos, a diversidade do seu trabalho tem percorrido as memórias da arte moderna e contemporânea, tentando encontrar, paradoxalmente, nas veredas muito estreitas do seu gosto pessoal, das suas idiossincrasias e da sua cortante ironia, uma poética do erro, da falha, da preguiça, a possível magia do gesto artístico.
Numa entrevista do final da sua vida, Marcel Duchamp dizia que “Há três tipos de gosto: o bom gosto, o mau gosto e o gosto indiferente. Eu sou pelo gosto indiferente.” O percurso de Ana Jotta parece, por vezes, uma ironia sobre esta teoria (em si mesma irónica) do “gosto indiferente”.
A obra Jotas é exemplar da fissura sobre a qual assenta o mecanismo de sentido que Jotta define, muito próximo de um dos seus artistas de eleição, Marcel Broodthaers. A escultura (ou conjunto de esculturas, ou de desenhos tridimensionais) é um grupo heteróclito de formas muito próximas da letra “J”. A presença no espaço de cada um desses elementos é muito diversa: uns são grandes, outros pequenos, uns são claramente artesanais, outros são objectos encontrados que só a procura da similitude os pode ter feito desencantar num qualquer lugar.
Em todos se multiplica a assinatura, mas uma assinatura sem estilo, ou infantilmente de quem o procura na tentativa identitária mais simples. O estilo sempre foi um dos campos mais férteis para o exercício da recusa de Ana Jotta. Diga-se: o estilo como marca procurada, onde se antevê um aceso trabalho de buril e cinzel. Não quer dizer que não exista, na repetição de jotas de Jotta um enorme sopro egótico que vem a surgir no seu percurso desde que adoptou, nos anos oitenta, um sinal gráfico que, como uma marca, suportava numa mesma complexa identidade todas as variações dos procedimentos que mobilizava como arte.
Assim, a obra de Ana Jotta é um périplo pelas inúmeras possibilidades das suas andanças e afinidades electivas, numa galeria onde pontificam Duchamp e Beckett, Broodthaers e Georges Perec, Joseph Cornell e Leporello, o criado de Don Giovanni que inventaria os amores do amo.
Jotta, no entanto, é mais próxima de Casanova, porque é ela mesma que cria as inventariações dos seus amores, dos cruzamentos que leva a cabo a partir das apropriações que realiza: de obras de arte, de objectos, de imagens, de textos, de conceitos, de preceitos e de afectos.
Portanto, este auto-retrato em jotas é só um aparente auto-retrato, na medida em que não aspira a sê-lo mais do que qualquer outra obra que Ana Jotta tenha apresentado desde o início do seu percurso, em 1986.
Delfim Sardo