A coleção inclui uma pintura de Vieira Portuense excecionalmente sofisticada, tanto na singularidade do tema - Júpiter com as Ninfas de Dodona -, quanto no modo como corporiza as figuras através da vibração da luz, primeiro, e a faz depois diluir na profundidade da paisagem, num notável trabalho em mancha, com que reduz progressivamente o céu e a terra à unidade de uma poalha luminosa.
"Cena de mitologia romana representando um episódio da infância de Júpiter. Uma pintura misteriosa e sofisticada, que evoca uma das versões do nascimento e infância de Júpiter. Esta diz que um oráculo havia advertido Saturno de que seria destronado por um dos seus filhos. Para o evitar, Saturno devorou à nascença os seus cinco primeiros descendentes. Reia, mãe de Júpiter, logo que em segredo deu à luz entregou-o às Ninfas de Dodona para que o criassem até à idade adulta, levando a Saturno, na manhã seguinte ao parto, uma pedra embrulhada em panos. Saturno devorou o que a esposa lhe trazia sem perceber que não era a criança. Júpiter estava salvo e a previsão do oráculo cumprir-se-ia.
A pintura sintetiza a narrativa em dois níveis: Júpiter está salvo e rodeado pelas ninfas, doces amas que o alimentavam entre os seios desnudados e aprestos de cozinha, enquanto a que está de pé, de costas para o observador, evoca o embuste de Reia representado no céu. Saturno, sentado em nuvens, prepara-se para receber o que julga tratar-se de um recém-nascido. (...)
Pictoricamente a obra é também algo sofisticada. Há um trabalho de mancha e vibração da luz que funde a profundidade da paisagem com o céu e que se estende, recessivamente, sobre a topografia dos primeiros planos, fundindo os contornos das formas numa picturalidade lírica e muito difusa, levando-nos instintivamente a pensar em pintura britânica da época e numa longínqua suavidade correggiana. As vestes e carnes das ninfas participam dessa franqueza e subtileza pictóricas, mantos e perfis diafanamente sombreados e acentuados com pinceladas de luz muito matéricas, finas e angulosas, que se impõem visualmente como pequenos fragmentos ou sequências de "pura" pintura. Nesses motivos de sedução se evocam e justificam "maneiristicamente" algumas impossibilidades anatómicas, como as alongadas pernas das ninfas sentadas, a que acolhe Júpiter em artificioso contornismo de pose e de proporções. É, em suma, uma misteriosa e atraente pintura do versátil Francisco Vieira."
José Alberto Seabra de Carvalho