A Última Ceia , apesar dos desgastes e dos repintes antigos que lhe desvirtuam valores, é uma obra essencial para identificar a dimensão criativa do Grão Vasco - no modo como descentra os núcleos formais e os ordena em diferentes planos em profundidade, sempre unificados ou articulados pela distribuição rítmica da luz; no rigor que coloca na expressão volumétrica e na plasticidade da forma, através de gradações tonais subtis; na densidade expressiva dos rostos ou no preciosismo com que dá visibilidade aos pormenores mais ínfimos e discretos, do primeiro ao último plano.
A importância desta pintura, uma das últimas obras que teria realizado, passa também pela singularidade e complexidade do programa iconográfico. Considerando que foi encomendada pelo bispo D. Miguel da Silva para a capela do seu paço, localizado nas imediações da cidade, no Fontelo, é de todo provável que o programa seja o resultado da sábia interferência do mecenas, cuja oposição ao estabelecimento da Inquisição em Portugal lhe valeu o ódio de D. João III e a fuga para Roma, em 1540.
A originalidade da pintura passa também pela relação entre o registo figurativo, desenvolvido de modo contínuo e sem interrupções formais, e a forma tripartida do suporte. Na tábua central, as figuras representadas do lado de cá do muro indiciam tratar-se da Última Ceia ou da Instituição da Eucaristia - Cristo, que segura o cálice eucarístico, é ladeado por S. Pedro, S. João e por uma outra figura nimbada, um apóstolo. S. Mateus, já identificado como evangelista através de uma inscrição na sobrepeliz, é representado de perfil e em acto de escrita. A identificação do tema reforça-se com as figurações da tábua da esquerda - sete apóstolos organizados em redor da mesa, um prolongamento da tábua central com a forma de L, elevam também a hóstia eucarística. Judas, na tábua direita, e em fuga na tábua esquerda, com a iconografia habitual da traição, o saco de moedas e o traje amarelo, complementa o grupo dos apóstolos.
As figurações desta tábua, à exceção de Judas e do pequeno cão - certamente um símbolo da fidelidade, por oposição à traição do apóstolo -, não têm lugar na representação habitual da Última Ceia. O episódio do Lava-pés evoca-se através da representação da bacia com água em primeiro plano, e a presença das duas figuras femininas que se aproximam de Cristo, uma das quais segura a boceta com o perfume de nardo, atributo de
Madalena, poderão associar-se com o Cupido, numa provável alusão à dicotomia entre o Amor Profano e o Amor Sagrado.
Para fazer acrescer outro sentido ao programa iconográfico, mas também para assegurar a unidade visual do registo, representa-se em toda a extensão da pintura um muro contínuo que separa os planos. Na tábua central, assomam de um compartimento contíguo algumas personagens, uma das quais transporta para a mesa eucarística o cordeiro pascal, de acordo com a celebração judia. Os elementos que figuram sobre a mesa, as ervas amargas e o pão sem fermento, poderão ser entendidos como uma alusão ao tema da Saída do Egipto.Dalila Rodrigues