CO-4928
Ramos, Graciliano. [Carta] 1946 fev. 13, Rio de Janeiro, RJ [para] Candido Portinari, [
Brodowski, SP]. 2 p. [manuscrito]
Caríssimo Portinari:
A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo, as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram.
O que à vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejaremos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças?
Doa quadros que V. me mostrou quando almocei no Cosme Velho pela última vez, o que mais me comoveu foi aquela mãe a segurar a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível
fazer-se aquilo? Numa vida tranqüila e feliz, que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que teríamos [ilegível], anjinhos cor-de-rosa, e isto me horroriza.
Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela, não lhe parece? Veja como os nossos ricaços em geral são burros.
Julgo naturalmente que seria bom enforcá-los, mas se isto nos desse tranqüilidade e felicidade, eu ficaria bem desgostoso, porque não nascemos para tal sensaboria. O meu desejo é que, eliminados os ricos de qualquer modo e os sofrimentos causados por eles, venham novos sofrimentos, pois sem isto não temos arte.
E adeus, meu grande Portinari. Muitos abraços para V. e para Maria.
Graciliano
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