Letter

CO-518 Radspieler, Maria Laura. [Carta] 1953 out. 19, Florença, ITA [para] Candido Portinari; Maria Portinari, Rio de Janeiro, RJ. 3 p. [manuscrito] Caros amigos: Creio que já estou perdoada pelo atraso desta prometida carta, mas ainda não parei de sentir aquela sensação primeira: o desejo de ver mais, mais... e as palavras se confundem e não era assim que gostaria de escrever. Mas esperar pela síntese seria esperar muito. A Itália é a Arte. Aqui sentimos a vida igual a estar sonhando, isto é, quando as liras estão conosco. Paga-se caro este delírio: poder sentir a potência concentrada dos grandes. Depois de ajoelhar-me diante dos venezianos – que força de cor, de plasticidade, de harmonia, eu fico, diante de um Van der Goes, extasiada, um Beato Angélico com a Deposicione de Cristo, um Tiziano, um Veronese, um Tintoretto, um Botticelli, enfim, todos esses que saltam da tela e entram pelos nossos olhos até arrancar lágrimas de vibração. Depois é Miguel Angelo, Donatello, Cellini, Giovanni Pisano (este último, visto no Museu de Pisa, onde a chuva também colaborou para a beleza de suas esculturas – sente-se a eternidade, o mistério, nessa obra simples, trabalhada na pedra). Comecei a compreender a linguagem da pedra, agora. Antes olhava para as esculturas sem ouvi-las, mas é impossível sentir esse poder quando estamos distantes de Firenze; hoje, acordo pela manhã e, bastam alguns passos, entro na Piazza della Signoria, Academia, S. Lorenzo etc. etc. vejo! É preciso que os amigos venham depressa gozar esse êxtase, enquanto ainda é possível – a realidade, a vida de luta está se gangrenando, mais um pouco... explodirá. O ambiente é ótimo para o visitante, para aquele que leva o tempo exato para conhecer tudo, mas, viver aqui: - uma batalha intensa. Itália é o nosso museu, onde podemos ver a boa pintura e a má pintura. Onde seu solo é cultivado com amor mesmo, porém, as “mesmíssimas bagunças” de qualquer outra cidade sob a pressão fantástica do século. É preciso mudar muita coisa... Mas, afinal, isso é o problema mais legível da época, e nada adianta que eu fale disso. É necessário que se veja claro e nossa juventude do Brasil pode ainda fazer muito. Enquanto esse, caracterizada muito bem num filme que assisti no Festival de Veneza, il Vitteloni, uma história fiel desse pedaço da Itália, onde os jovens olham para as pedras, discutem, jogam e, muitas vezes, vão aos museus copiar um Rubens numa telinha picolla, com uma palheta suja e, para finalizar, olham para Rubens sentados de costas – isto já não é uma posição correta e uma falta de sensibilidade, de respeito. Tenho distribuído um pouco do aprendizado, que jamais esquecerei, do maestro querido e, ao mesmo tempo, lançado uma esperança nesses pobres abandonados que se iludem, copiando os mestres numa maneira torpe de impressionismo barato. Sinto-me grande, não acham? Ao menos, tenho dentro de mim a admiração e a vontade de fazer alguma coisa. E, felizmente, encontro sempre uma chama amiga que me diz muito. Estou humildemente agradecida, comecei a ver quanto valor existe, quanto é grandioso encontrar um caminho. E meus amigos Maria e Prof. Portinari, um saudoso abraço banhado de luz da bela Firenze. Um abraço para o João e lembranças a todos. Peçam ao Otávio que me escreva, contando as novidades, deixo Firenze no fim do mês para Paris. Este pedido é porque seria desejar muito e incomodar mais o trabalho intenso que levam aí. Rogo um voto de viagem breve e venham sonhar um pouco. Abraços Maria Laura