CO-301
Andrade, Mário de. [Carta] 1935 mar. 25,
São Paulo, SP [para]
Candido Portinari, Rio de Janeiro, RJ. 2 p. [datilografado]
Portinari amico mio,
Já estava assustado com o seu silêncio. Mas tem-se que dar razão aos pintores, que pintam milhor os setes das beleza plásticas que os agás e jotas tão pouco plásticos da escritura. Aliás si já não lhe mandara um cartãozinho foi apenas porque não sabia a sua residência. Aqui tudo na mesma. Depois de amanhã dou uma reunião aos amigos e uns professores franceses, pra que venham ver o meu retrato que todos anseiam por ver. Lhe escreverei depois contando os gritos de entusiasmo do pessoal. Todos que aparecem por aqui se assombram com o retrato. Si eu pudesse e houvesse uma boa revista que publicasse tricromias, escrevinhava como o Manuel um ensaio sobre os “Meus Dois Pintores”, você e o Segall. Mostraria então o que foi pra mim uma revelação, um verdadeiro soco na barriga quando descobri: é que você me revelou o meu lado angélico, ao passo que o Segall me revelou o meu lado diabólico, as tendências más que procuro vencer. Às vezes me paro em frente do seu quadro e fico, fico fico, não só perdido na beleza da pintura, mas me refortalecendo a mim mesmo. Porque de-fato você mais que ninguém, não apenas percebeu, mas me revelou que eu... sou bom. Seu quadro me dá confiança em mim, me dá mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tónico. Foi um bem enorme que você me fez, palavra.
O Carnaval aqui esteve bem divertido, apesar da frieza paulista. Eu pelo menos me diverti à larga e os bailes estiveram colossais, todos dizem. Mas nem assim deixava de imaginar de vez em quando no que estariam fazendo vocês aí os do grupinho. Vejo pela sua carta que a coisa não foi tão divertida assim e lastimo por vocês. Agora aqui está fazendo uma delícia de dias claros, mornos, sem chuva e noites quasi frias, gostosas da gente dormir. Vai chegar a grande época de S. Paulo, abril, maio, com tardes que a gente chega a pensar que vai arrebentar de tanta gostosura. É o tempo aliás em que levo um pouco flauteadamente a vida porque não há meio, pra um gozador que nem eu, de ficar encerrado dentro de casa, com um tempo assim lá fora. Viro passarinho, viro flor, não sei o que viro, sei é que me esqueço de ser Mario, nestas tardes sublimes. Venha com Maria apreciar a coisa.
No resto, continuo na minha vidinha, sempre com saudades de vocês dois e dos nossos momentos de convívio, infelizmente tão pequenos. Escrevi hoje pro Antonio Bento também, e agora vou trabalhar um bocado, dar conta das correções de provas dum livro que a Revista Acadêmica aí do Rio está publicando. E ciao. Um grande abraço pra você e outro pra Maria.
Mario