CO-272
Andrade, Mário de. [Carta] 1941 jan. 7, Rio de Janeiro, RJ [para]
Candido Portinari,
Brodowski, SP. 2 p. [manuscrito]
Meu caro Portinari amigo
Tenho sido ingrato, injusto e mau amigo com você: não lhe escrevi nem siquer lhe telefonei pela passagem do ano. Mas é que estava mastigando uma das crises mais cruéis de minha vida que culminou com a decisão de voltar a morar em
São Paulo outra vez. Volto para a minha rua Lopes Chaves, 546 que será sempre a sua casa paulista de agora em diante. Era isso que eu já devia ter feito antes. A culpa não é de ninguém mais, a culpa é minha. E por minha culpa atravessei três anos vazios, que ficaram como uma espécie de buraco em minha vida, inúteis e sem nada. Não tive a audácia suficiente pra me instalar com armas e bagagens no Rio, sempre alimentando a esperancinha magra e sem sal que as condições mudassem e eu pudesse reassumir meu posto de chefe de divisão no Departamento. Mas as condições não mudaram e a espera redundou num vácuo de três anos inutilizados, paciência. O importante é agora caminhar pra frente sem me queixar do passado.
Do Rio levo duas saudades principais e inesquecíveis: você com Maria e sua gente e mais o lar da Liddy Chiaffarelli com o Mignone. Não é que não tenha outros amigos muito bons no Rio e tenha vivido horas deliciosíssimas de prazer com todos eles. A diferença é delicada mas profunda. Na casa de você como na da Liddy justamente o que não havia era essa necessidade de prazer, esse ar de festa, esse lado social da convivência que pode ser muito divertido mas não satisfaz o ser na sua permanência quotidiana da afeição. Enfim na casa de você como na da Liddy eu conservava o meu direito de estar triste, como si vocês fossem pra mim o prolongamento da minha própria casa e da minha família. E isso foi uma salvação pra mim.
Não sei o que vai ser de mim estes primeiros dias de São Paulo. Preciso fazer uma pequena operação na boca, não sei si o dentista decidirá fazê-la já. Si não for já então irei para as fazendas de parentes em Araraquara e irei até você. Estou numa curiosidade quase esfomeada de ver as pontas-secas. Com a sensibilidade do seu traço imagino o que elas podem ser. Aqui lhe mando o mais afetuoso abraço e toda a minha gratidão pra você com Maria. E o desejo de uma vida mansa e forte para o João Candido. Recomende-me aos seus pais e irmãos.
Mario