FORMA E AUSTERIDADE
Madame Récamier segundo David é uma escultura com um passado claramente indicado no título: é herdeira de uma pintura de David, realizada em 1800, de Jeanne-Françoise Julie Adélaïde Bernard Récamier, epitome de beleza, requinte literário e independência intelectual; em suma, a femme du monde que sobreviveu, nas suas vicissitudes, à Revolução e ao bonapartismo.
O retrato de David (pintor de Napoleão, criatura dúbia e virtuoso) antecederia dois anos o retrato de Madame Récamier realizado por Gérard e muitos mais as versões em pintura (de 1957) e em escultura (dez anos depois) de Magritte, como tinha antecedido La grande odalisque de Ingres. É uma pintura que marca uma época, um estilo e uma ideologia. Madame Récamier está deitada num divã império, vestida com aquela versão neoclássica de vestido que fez grassar a pneumonia na corte de Napoleão.
A escultura de Rui Sanches é uma conversão volumétrica e deserotizada do retrato, com a atenção concentrada na compreensão do mecanismo compositivo da pintura, convertida em construção analítica, pobre nos materiais e neoclássica na sua construção. É um caminho muito curioso e estranho o que Rui Sanches escolheu para a sua escultura desde a década de oitenta; tomando o neoclassicismo como o seu campo de trabalho, convertia em construção pobre e estrutural o rigor compositivo, fazendo reunir uma linguagem escultórica oriunda das vanguardas da primeira metade do século, com um interesse pelo seu exacto oposto, o formalismo do universo neoclássico. Nessa reunião surgia uma tese sobre a forma, uma releitura dos universos antitéticos que lhe serviam de ferramenta e material, uma síntese entre uma austeridade do material (madeiras de pinho, estafe, por vezes a suprema ironia do bronze pintado de branco) e a referência napoleónica e imperial dos seus modelos.
Esta duplicidade haveria de abrir o caminho para uma obra que se dirigiria, cada vez mais, para uma teoria da forma, depois para uma deliberada articulação de referências históricas através de uma teoria do volume tomado como a componente essencial da escultura.
Delfim Sardo