Sir Thomas Lawrence (e atelier?)
Londres, Inglaterra, 1829-1831
Óleo sobre tela
91,5 x 71 cm
Magistral retrato do natural de D. Maria II com nove anos, pintado por ocasião da sua estadia em Londres entre outubro de 1828 e agosto de 1829, reinando então George IV. No que toca à composição, ao estilo e às dimensões, este retrato do Museu Nacional de Arte Antiga, em depósito no Ministério dos Negócios Estrangeiros, é praticamente idêntico ao retrato propriedade das coleções reais inglesas existente no Castelo de Windsor [1], encomenda de George IV a Sir Thomas Lawrence. Por este trabalho o pintor recebeu 210 libras, pagas a 9 de setembro de 1829 [2]. A moldura do retrato da Casa Real inglesa, também de encomenda régia, foi fornecida pelo entalhador e dourador Edward Wyatt, em 1830, ano da retrospetiva póstuma de Lawrence na Royal Academy de Londres, onde a pintura foi apresentada publicamente [3]. Mais tarde, em 1833, a pintura voltaria a ser mostrada na instituição britânica.
O retrato do Museu Nacional de Arte Antiga, atribuído nos últimos anos a John Simpson, pode tratar-se de uma réplica coetânea executada pelo pintor (auxiliado no atelier) ou por um dos seus assistentes mais brilhantes e experientes, provavelmente John Simpson [4], colaborador do mestre a partir de cerca de 1818. Hipótese que ganha maior força se se tem em conta a data de execução da pintura de Lawrence (1829), muito próxima da data da sua morte (7 de janeiro de 1830), pois Simpson teve um papel fundamental nas encomendas da fase final do mestre, chegando mesmo a completar vários retratos inacabados após o seu falecimento [5]. O próprio Lawrence, já com sessenta anos, numa carta de 17 de agosto de 1829 que delimita melhor a cronologia do retrato de D. Maria II, escreve o seguinte: “(…) A Rainha de Portugal concedeu-me hoje a sua última sessão. Quando finalize o quadro, deverei enviá-lo a Mrs. Peel [6] para inspeção. (…) A rainha de Portugal, de jure, não foi um excelente tema para um retrato, e as suas faixas de condecorações, muito coloridas, não combinavam com a sobriedade do vestido, talvez resultado da nossa atmosfera sombria.” [7]. Neste sentido, pode-se afirmar que a obra, exposta no Castelo de Windsor desde o reinado de George IV, foi concluída na segunda quinzena de agosto de 1829. Por outro lado, no “Catalogue of the remaining pictures and unfinished sketches of Sir Thomas Lawrence…” (1831), catálogo do leilão que decorreu em Londres no sábado 18 de junho de 1831, elencam-se mais de 150 lotes de pinturas e desenhos de Lawrence, entre os quais uma réplica acabada do retrato de D. Maria II. Trata-se do lote nº 98, sendo assim descrito: “Ditto [Portrait] of the Queen of Portugal, a finished copy”, porventura a obra do Museu Nacional de Arte Antiga [8], o que, a verificar-se, significaria que este retrato, até agora considerado cópia de John Simpson, é na verdade uma réplica de Lawrence com provável intervenção oficinal, talvez de Simpson, o que viria a explicar a sua tradicional atribuição. O método de trabalho seguido na oficina era simples, o mestre pintava ou esboçava o rosto e as mãos, enquanto o(s) ajudante(s) escolhido(s) compunha(m) o resto.
Anotações manuscritas num exemplar do catálogo da venda em leilão dão informações sobre os compradores das pinturas e desenhos, identificando o “comprador” do lote 98 como “C. Clinton”.
Outro cenário possível, embora menos consistente, relaciona-se com a vinda de John Simpson para Portugal em 1834, ao serviço da rainha D. Maria II, já adolescente, com cerca de 15 anos. Da sua autoria é o retrato assinado e datado (John Simpson Pinx. 1834) que esteve na Câmara dos Pares, em São Bento (hoje no Museu Nacional dos Coches), e que foi exposto em 1835 na Royal Academy. O retrato da rainha em menina do Museu Nacional de Arte Antiga também poderia ter sido executado naquela altura, sobretudo tendo em conta a estreita ligação de Simpson com Sir Thomas Lawrence. Embora a ligação formal entre ambos os retratos seja evidente, a pintura de Simpson, do Museu Nacional dos Coches, onde a rainha revela ter mais idade, não patenteia as qualidades plásticas e o requinte de Lawrence.
Entre estas duas suposições, face às informações apontadas e às comparações estilísticas entre ambos artistas, parece mais plausível a opção de se estar perante a réplica do retrato de D. Maria II, de Lawrence, quiçá terminada por um dos seus colaboradores em cerca de 1831. Nesta linha de pensamento, é interessante recuperar um dado fornecido por Ernesto Soares e Henrique de Campos Ferreira Lima (“Dicionário de Iconografia Portuguesa. Retratos de portugueses e de estrangeiros em relações com Portugal”, 1948) ao referirem-se à inscrição que acompanha uma gravura de Joseph Brown, de 1836, que reproduz a pintura do Museu Nacional de Arte Antiga: “D. MARIA II / rainha reinante, primeira mulher de D. Fernando II / cópia do seu retrato, pintado em Londres, em 1831, por Thomas Lawrence, pertencente a el-rei D. Luiz I”. Os autores também referem que “a chapa pertence hoje ao restaurador de quadros Sr. Ribeiro que nos presenteou com uma prova em papel acartonado. O quadro original existe no M.N.A.A. sob N.º 1603.”.
O historiador de arte e conservador João Couto – segundo diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, de 1938 a 1962 – no seu artigo "Obras de arte inglesa no Museu Nacional de Arte Antiga”, publicado em 1963 na revista “Ocidente” com base na palestra que realizou no Instituto Britânico em 1949, considerava o retrato do museu lisboeta detentor das “qualidades de frescura, graça, facilidade, transparência, elegância, que são próprias da obra de Lawrence”, sem aceitar a atribuição – proposta por John Steegman – a J. Simpson, a quem qualifica de “pintor secundário”.
Independentemente da dificuldade em deslindar se o retrato do museu português é da mão (total ou parcial) de Thomas Lawrence ou de John Simpson, as equivalências entre ambos os retratos são evidentes. O rosto embelezado, de tez clara, primorosamente ruborizada; o ar de refinada e descontraída elegância; a postura e atitude delicada; a coluna clássica e a cadeira de braços como principais adereços; o fundo paisagístico esbatido; o vibrante colorido da indumentária e a pincelada fluida são caraterísticas que ambos os retratos partilham. Em qualquer caso, o contributo de Lawrence é inegável na retratística de Simpson, sobretudo pela fusão com a tradição áulica e aristocrática de Anton Van Dyck (1599-1641) e de Joshua Reynolds (1723-1792), cujos esquemas compositivos e apurada técnica pictórica encontram continuidade quer no pintor de George IV quer no seu destacado colaborador.
A 21 de setembro de 1833, os semanários londrinos “The Court journal. Gazette of the fashionable world” e “The Spectator” avançavam a notícia da passagem para gravura do retrato de D. Maria da Glória, obra de Lawrence, usando adjetivos como “exquisite”, “gem” ou “embellishment”. Esta gravura, da autoria de Robert Graves (1798-1873), era uma das onze ilustrações destinadas a enriquecer a edição de 1834 da publicação “The Amulet. A Christian and Literary Remembrancer”, um dos anuários literários mais proeminentes da época, editado por Samuel Carter Hall.
Em 1836, os editores Richard Hodgson e Henry Graves, “Printsellers to the King”, iniciam a publicação de “Engravings, from the Works of the Late Sir Thomas Lawrence, P.R.A.”. O pintor de retratos e gravador John Lucas (1807-1874) foi um dos artistas colaboradores, autor da nova gravura do retrato de D. Maria da Glória, de 12 de abril de 1836, com a inscrição “Donna Maria, Queen of Portugal”, integrada no primeiro conjunto (Part I) de três estampas à venda (16 conjuntos). Robert Graves, autor da primeira gravura conhecida do retrato, era irmão de Henry Graves.
Também de 1836, segundo Ernesto Soares e Henrique de Campos Ferreira Lima, é a gravura de Joseph Brown (ativo entre 1833 e 1886), feita em Londres a partir de uma fotografia do retrato de Lisboa. Desenhador e gravador, com oficina em Forest Hill, Brown era conhecido pelas suas gravuras originais e de reproduções de retratos célebres. Esta gravura foi uma das ilustrações do estudo histórico “Rainhas de Portugal” (1878 e 1879), de Francisco da Fonseca Benevides. A 5 de janeiro de 1886, a propósito da morte do rei D. Fernando, “A Illustração. Revista de Portugal e do Brasil”, publicação de Mariano Pina editada e impressa em Paris, trazia uma boa reprodução fotográfica desta gravura em cobre, indicando de modo explícito “copia d'um bello retrato pintado por Thomas Lawrence (…) que apenas figurou no (…) volume (…) intitulado As Rainhas de Portugal”.
Já no século XX, a 29 de maio de 1967, é aprovada a emissão de uma nova chapa de notas de 1000 escudos (chapa 10 - efígie de D. Maria II), posta em circulação pelo Banco de Portugal, instituição criada pela rainha em 19 de novembro de 1846. A imagem escolhida para figurar na frente da nota foi o retrato em menina do Museu Nacional de Arte Antiga, tornando-o uma das “efígies” mais conhecidas dos cidadãos portugueses, pelo menos até 30 de janeiro de 1987, data em que a nota foi retirada de circulação.
A escolha desta rainha estava, para o Banco, devidamente justificada, pois “D. Maria II, senhora de altas virtudes, dotada de uma vontade energética e ampla visão dos problemas políticos da época, foi sempre venerada como esposa e mãe de família até pelos seus mais ardentes adversários”.
SOBRE THOMAS LAWRENCE
Sir Thomas Lawrence (Bristol, 1769-Londres, 1830) foi o mais destacado retratista inglês da sua geração. Após a morte de Sir Joshua Reynolds, em 1792, é nomeado pintor do rei George III. Um ano antes tinha sido admitido na Royal Academy e, em 1815, o Príncipe Regente (futuro George IV) atribui-lhe o título de “Sir”. Retratista habitual da família real inglesa desde 1790, rapidamente se torna o pintor de moda entre a alta sociedade. Em 1820, após a ascensão ao trono de George IV, Lawrence é eleito presidente da Royal Academy, cargo que conservou até a sua morte.
O seu virtuoso pincel captou as efigies dos principais líderes e cabeças coroadas da época. Entre os seus pupilos destacam-se Richard Evans e John Simpson.
SOBRE JOHN SIMPSON
Pintor especializado no género do retrato, estudou na Royal Academy e foi um dos mais importantes colaboradores de Sir Thomas Lawrence, auxiliando ativamente em vários retratos da fase final do mestre e completando diversos retratos inacabados após a sua morte. É possível que tenha dado resposta a certas encomendas que solicitavam a cópia de retratos executados por Lawrence, como se sabe ter acontecido com Richard Evans, outro dos assistentes do pintor.
Na produção de Simpson destaca-se “O escravo cativo”, arrojada pintura exposta na Royal Academy em 1827 que expressa a sua postura favorável à abolição da escravatura, que apesar de ilegal no Reino Unido ainda era uma realidade nas colónias. Tratava-se de um polémico assunto no contexto sociopolítico da época e da Royal Academy, sobretudo tendo em conta que a abolição da escravatura nas colónias só se efetivaria totalmente em 1833 através de uma lei do Parlamento, o Slavery Abolition Act.
O modelo da pintura foi Ira Aldridge, então com cerca de vinte anos, afroamericano nascido livre e primeiro ator shakespeariano de ascendência africana a trabalhar nos cenários teatrais londrinos e europeus, interpretando papéis como Shylock, Macbeth, Richard III e o Rei Lear.
[1] A tela das coleções reais inglesas mede 92,4 x 71,8 cm e a tela de Lisboa 91,5 x 71 cm.
[2] Informação recolhida da Lista de retratos pintados por Sir Thomas Lawrence por ordem do Rei [George IV], durante o “Privy Purse” de Sir William Knighton: “finished - (l) - A kit cat portrait of Her Majesty the Queen of Portugal (1829) - [£]210”. Vide Arthur Aspinall, “The Letters of King George IV. 1812-1830. Published by Authority of His Late Majesty George V”, vol. III, Londres, pp. 485-491.
[3] No “Catalogue of the Works of Sir Thomas Lawrence, exhibited in the year 1830, immediately after his decease, at the British Institution”, o retrato é citado como “Donna Maria Gloria–HIS MAJESTY”. É a peça nº 52 de um total de 91, com referência à origem Real da encomenda. Na mostra, apresentada na Royal Academy de Londres, incluíram-se também os 21 retratos encomendados pelo rei George IV para a Waterloo Gallery do Palácio de Windsor. Vide D. E. Williams, “The Life and Correspondence of Sir Thomas Lawrence…”, vol. I, Henry Colburn and Richard Bentley, New Burlington Street, Londres, 1831, pp. 469-473.
[4] O historiador e crítico de arte John Edward Horatio Steegman (1900-1965), em carta de março de 1943 dirigida ao então Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, João Couto, sugere o nome de John Simpson como autor do retrato do Museu Nacional de Arte Antiga. Vide "Artes Plásticas - Obras de Arte Inglesa no Museu Nacional de Arte Antiga”, in Ocidente. Revista Portuguesa Mensal, nº 298, vol. LXIV, fevereiro de 1963, pp. 118-131. Artigo que tem por base a palestra proferida no Instituto Britânico a 10 de fevereiro de 1949.
Era a primeira vez que um especialista – neste caso um membro da equipa da National Portrait Gallery de Londres – apresentava a atribuição a John Simpson como uma hipótese a ter em conta, atribuição que vigorou até hoje.
[5] Thomas Lawrence deixou entre 150 e 200 retratos inacabados.
[6] Julia Floyd, esposa de Sir Robert Peel, baronete e Secretário de Estado para os Assuntos Internos, mecenas do pintor e futuro Primeiro-Ministro de Inglaterra.
[7] D. E. Williams, “The Life and Correspondence of Sir Thomas Lawrence…”, vol. II, Henry Colburn and Richard Bentley, New Burlington Street, Londres, 1831, pp. 513-514. Transcrição da carta escrita por Thomas Lawrence em Russell Square: "(…) The Queen of Portugal gives me her last sitting today. When the picture is painted I shall send it to Mrs. Peel, for her inspection. (…) The Queen, de jure, of Portugal did not make a very excellent subject for a portrait, and her many coloured sash of knighthood but ill corresponded with the more sober taste in female dress, engendered, perhaps, by our gloomy atmosphere. ".
[8] Em 1969, o historiador de arte Oliver Nicholas Millar, então conservador-adjunto da Royal Collection, já tinha sugerido a possibilidade do retrato de Lisboa ser a réplica leiloada em Londres em 1831. Vide Oliver Millar, The Later Georgian Pictures in the Collection of Her Majesty The Queen, Londres, 1969, pp. 71-72.