Obra raríssima na produção de Silva Porto que, à excepção do período italiano, quase não pintou paisagens urbanas, ela manifesta ainda de outro modo a sua particularidade, pela escolha de um nocturno que, ao que sabemos, o artista não voltou a experimentar.
Mas ao contrário de tantos pintores seus contemporâneos – que celebraram o comboio e o movimento das gares como imagem peremptória da nova civilização – Silva Porto, que não amava as cidades, escolheu uma estação de província, propondo com ela uma figura fantasmática e desoladora onde a máquina é corpo fundido com a noite, tenuamente iluminado, e a gare um lugar inóspito e solitário, também escassamente iluminado.
É possível que esta estação fosse uma das que Silva Porto utilizava, nas suas deslocações para o norte do país e que o desconforto da cena tenha sido por ele muitas vezes vivido. Para lá desta eventual marca biográfica, o quadro interessa-nos pelo seu teor experimental: trata-se ainda de um exercício lumínico, como ele sistematicamente fez, mas à beira da implosão das suas potencialidades, permitindo pensar quanto, apesar das suas convenções, o naturalismo pôde ser um caminho para propor o futuro da pintura que, numa dessas vias, então impensável, há-de conduzir à abstração.
Acrescente-se ainda que existe, numa coleção particular, um quadro que regista exatamente o mesmo tema, com o mesmo enquadramento e solução pictórica mas mais aberto e propositivo em termos de paleta. O facto de Silva Porto nunca ter assinado nem exposto nenhuma destas obras confirma que as considerava exercícios pessoais que não interessava mostrar ao público bastante conservador.
Raquel Henriques da Silva