"Iberê havia instalado um manequim no ateliê. Naturalmente sem a intenção de seguir os ensinamentos rigorosos de André Lhote, exercitando-se na análise escrupulosa das formas humanas. Sua pintura já não é mais do que deformação e exagero grotesco. Os muitos desenhos que mostram manequins trazem à cena uma tensão entre dois seres femininos, como se a mulher só fosse representável sob essa dupla entidade enigmática: carne concreta e desgraciosa e imagem desejável e abstrata.
Essa dualidade remete, muito além do mito da mulher, à experiência da tensão entre o ideal e o real atual, armadura conceitual de toda a história da beleza na pintura e da representação idealizada da realidade. É a própria questão da verdade humana e de sua impossibilidade de concomitância com a beleza. Desde seu retorno à figuração, Iberê afastou-se de qualquer busca das seduções do belo. Neste ponto, ele pertence ao mundo contemporâneo da arte que somente se preocupa com a expressão de um anseio artístico por verdade. O manequim que serviu na obra de De Chirico para deixar para trás o formalismo cubista reveste, na obra de Iberê, a função de tensor entre uma vontade indomável de verdade expressiva e a lembrança de uma prática da pintura que visava à produção do belo, como bem mostram as obras anteriores a 1980."
LEENHARDT, Jacques. Iberê Camargo: os meandros da memória. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 34.
"Não deixa de ser instigante que um artista tão pouco indulgente com a cultura de massa como Iberê tenha se interessado pelos manequins expostos nas vitrines, ao ponto de torná-los um dos motivos centrais de sua última produção. [...] nos manequins de Iberê não há, parece-me, nem a busca de uma essência metafísica (ainda que, no caso de De Chirico, essa essência seja uma ausência), nem a construção de um objeto de desejo. Reduzidos ao plástico nu ou enfeitados de uma maneira que não deixa de ser grotesca, esses seres que simulam a vida são companheiros naturais das mulheres sentadas, das idiotas, dos ciclistas, com que compartilham o espaço de tantas telas e gravuras. O que os une é uma disponibilidade inerte para o mundo, sem mais sentido, sem mais desejo: são junkbodies, corpo-lixo. [...]"
MAMMÍ, Lorenzo. Iberê Camargo: as horas [o tempo como motivo]. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2014. p. 14-15.
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