"A busca do tempo perdido é um flagelo que não nos deixa nunca, brinquedos que somos de um destino malicioso e trágico.
Iberê Camargo marcou essa impossibilidade em todos os registros de sua obra, mas é sem dúvida em um de seus escritos, 'O relógio', que essa busca tão impossível quanto necessária exprimiu-se da maneira mais grotesca e desesperada. Savino, o protagonista do conto, perdeu seu relógio que caíra nos excrementos que enchiam as latrinas:
Ao descer do banco segurando as calças que lhe escorregam pernas abaixo – procura não pisar nas sujeiras espalhadas pelo chão – ouve um baque abafado dentro da fossa. Volta-se e vê, através do buraco do assento, seu relógio desaparecer, lentamente, numa imundice espessa, escura, variegada de amarelo-laranja.
– Oh! Meu relógio exclama Savino, contrafeito.
Aquele relógio antigo de prata cinzelada é a única herança que recebeu de sua avó. Não pode perdê-lo. Por isto, decide reavê-lo a qualquer custo.
A sequência do texto será tão bouffonne quanto trágica. Os seres e os elementos unem-se contra Savino que se esgota. Dia e noite, mergulhando todo seu corpo nas imundices, ele retoma incessantemente a tarefa, esgotando sua alma. Finalmente, a busca na fossa horripilante das latrinas
da história só trará à superfície restos desarticulados do relógio, testemunha do 'tempo perdido'.
E termina-se o conto:
Com os braços erguidos e a cabeça derrubada sobre o peito, [Savino] repete desvairado:
– O tempo, o tempo...
Como Savino, o pintor e o escritor tentam impedir a fuga do tempo perdido esforçando-se para recuperar os elementos dispersos. Nesse esforço contra a marcha inexorável do tempo, a construção da memória tem o papel principal:
Na memória, o antigo permanece. No passar vertiginoso do tempo, o instante quer ficar. O pintor é o mágico que imobiliza o tempo."
LEENHARDT, Jacques. Iberê Camargo: os meandros da memória. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2010. p. 37-38. (Observar notas na fonte).
"Costuma-se citar [...] um conto escrito por Iberê em 1959, mas publicado apenas em 1988: 'O relógio'. Nele, o protagonista fuça obsessivamente entre os dejetos de uma latrina, para reencontrar o relógio que caiu acidentalmente nela. Recupera assim, além de fragmentos do relógio, objetos do passado: trapos, brinquedos. Mas, aos poucos, é a própria substância fecal que o seduz, o ato de esmiuçá-la indefinitamente (sic), resmungando as palavras: 'O tempo, o tempo...'. Não há quem não veja, nessa fábula, uma analogia com a pesquisa artística do autor, quase uma declaração de poética."
MAMMÍ, Lorenzo. Iberê Camargo: as horas [o tempo como motivo]. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2014. p. 12. (Observar notas na fonte).
Estudo para ilustração do conto "O relógio", escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro "No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico".
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