REFAZER
Um trapézio branco recorta-se contra um fundo. Será um rectângulo? Não se consegue perceber claramente, porque o desvio em relação ao paralelo das margens do rectângulo, a existir, é demasiado subtil para tornar evidente a geometria das formas.
A pintura de Hugo Canoilas parte de um momento fundador da pintura no século XX: parte de Malevich e do suprematismo, da aventura russa das primeiras três décadas do século XX, dos primeiros monocromáticos de Rodschenko, da relação entre espaço bidimensional da imagem e a tridimensionalidade do espaço real de Lazar Lissitzky.
Começa no princípio da radicalidade de uma abordagem da pintura que haveria de anunciar a sua morte, tantas vezes repetida ao longo do último século, para voltar a fazer a mesma pergunta pela viabilidade da pintura. Refazer tudo outra vez, refazer tudo no espaço do quadro, ou, como tentou noutras ocasiões, ampliar a experiência para o espaço da habitação, cobrindo tudo de pintura, ou fazer um gigantesco palimpsesto, um diário das suas múltiplas experiências com a imagem (numa invocação de Kurt Schwitters, quase uma convocação do seu fantasma).
Refazer é uma prática da pintura, talvez um dos seus processos mais profícuos: Ingres refaz David, Manet refaz Velázquez que tinha refeito Ticiano, Matisse refaz Cézanne, Picasso refaz Velázquez, tudo numa espiral de recorrência do mesmo por outras vias, por outros processos, com outros fitos e para outros tempos. Refazer implica uma aguda consciência do tempo e do hiato entre o que se faz e o que foi, em tempos, realizado.
É esta adequação ao tempo da pintura, ao seu tempo recursivo e cíclico, que está presente na obra de Hugo Canoilas, porque fazer outra vez é sempre fazer de novo, para testar se a pintura é possível. O seu ponto de partida para esta pergunta é o mais difícil, porque é o da sua morte anunciada. Por isso mesmo a experiência de testar a secura do monocromático, a dureza da forma geométrica que se desequilibra no plano pictórico é muito mais do que uma simples repetição.
É um ensaio.
Delfim Sardo
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