COMO SE FOSSE POSSÍVEL
Imaginemos que ainda não havia arte, nem coleccionadores, nem críticos, nem mecenas, nem museus, nem galerias. Imaginem um antes do artístico, uma altura em que as imagens e os objectos tinham uma intensidade mágica, inspiravam medo ou riso, espanto ou desejo.
Essa é a matéria com que trabalha Francisco Tropa.
As suas obras são evocações de momentos, de histórias ou de situações, normalmente de momentos fundadores ou que possuem um valor único – que pertencem ao extraordinário. Investindo um enorme esforço de preparação e procurando um grande rigor, as imagens poderosas e sem tempo que produz criam situações, muitas alegóricas, que parecem usar uma linguagem da forma esquecida, mas que requerem, por parte do espectador, uma infindável teia de interpretação em busca de um sentido que se encontra sempre recôndito, sempre para lá do que vemos. Nunca é, no entanto, assim: bem pelo contrário, o que vemos e o cheiro que sentimos são a matéria da sua finíssima manufactura – o que, aliás, está claramente indicado no título maçónico deste conjunto de obras genericamente intituladas A assembleia de Euclides.
Este esqueleto que se encontra semicoberto de palha, ou a caveira em bronze exposta dentro de parte do molde, falam da escultura, do corpo e da morte.
A escultura nasce da necessidade de evocar os ausentes, os que morrem; por isso, a escultura está intimamente ligada aos objectos funerários ou, mais tarde, à vontade de perpetuar a imagem de alguém no convívio dos vivos, seja no interior de um monumento, na cidade ou no interior da casa.
Por isso, também, a escultura necessita de plintos, que afastam os objectos do contacto com a força da gravidade, isolando-os do solo, destino inevitável da perecibilidade humana.
Muitas das metáforas mais presentes e poderosas sobre a condição humana ligam-se à tentativa frustrada de libertação da gravidade – como o mito de Ícaro –, ou à queda como destino humano – como a ideia de queda de um anjo, ou de queda no pecado.
Consciente desta origem do escultórico, Francisco Tropa desenvolveu uma série de obras que partem do esqueleto como a matriz da escultura de um corpo, para recobrir esses ossos de argila, ou palha, ou terra, invocando os primeiros processos de encontrar, pelo processo de cozedura, a estabilidade do barro.
O molde (um dos processos tradicionais da escultura, como o escavado e o acoplado) é aqui apresentado em torno do objecto que produz, à semelhança do corpo que envolve o esqueleto, mas invertendo a sua função. A vitrina é como um esquife no qual o corpo-escultura, o esqueleto revestido de uma frágil e arcaica cobertura, encontra de novo a verticalidade escultórica e humana.
Claro que estas obras não pretendem ser réplicas de objectos de culto. São operações ardilosas sobre a capacidade de transfiguração que se encontra no processo artístico que é uma máquina de converter umas coisas em outras, de mudar o estatuto e a simbólica do que está perante nós.
São objectos teatrais que nos fazem tentar encontrar essa anterioridade e, por um breve momento, viver uma emoção de descoberta. Como se fosse possível.
Delfim Sardo
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